Dostoiévski ou Tolstoi? Peregrinações por Moscou

Parece que algumas viagens atraem um tipo preciso de pessoas. Conheci tanta gente em Viena que amava música clássica, na Bósnia que amava história contemporânea, e na Rússia, gente que amava literatura russa. No albergue, sempre via alguns que estavam lá para visitar a Moscou de Bulgakov, a Petersburgo de Dostoiévski ou de Anna Akhmatova… E quando a gente começava a falar sobre literatura, sempre vinha aquela pergunta:

– Dostoiévski ou Tolstói?

Para o crítico George Steiner, nenhuma escolha diz tanto sobre uma pessoa. Os dois romancistas russos tinham idéias completamente diferentes sobre o destino humano, o futuro histórico, o mistério da religião.

“Thus, even beyond their deaths, the two novelists stand in contrariety. Tolstoy, the foremost heir to the traditions of the epic; Dostoevsky, one of the major dramatic tempers after Shakespeare; Tolstoy, the mind intoxicated with reason and fact; Dostoevsky, the contemner of rationalism, the great lover of the paradox; Tolstoy, the poet of the land, of the rural setting and the pastoral mood; Dostoevsky, the arch-citizen, the master-builder of the modern metropolis in the province of language; Tolstoy, thirsting for the truth, destroying himself and those about him in excessive pursuit of it; Dostoevsky, rather against the truth than against Christ, suspicious of total understanding and on the side of mystery; Tolstoy, “keeping at all times”, in Coleridge’s phrase, “in the high road of life”; Dostoevsky, advancing into the labyrinth of the unnatural, into the cellarage and morass of the soul; Tolstoy, like a colossus bestriding the palpable earth, evoking the real, the tangibility, the sensible entirety of concrete experiences; Dostoevsky, always on the edge of the hallucinatory, of the spectral, always vulnerable to daemonic intrusions into what might prove, in the end, to have been entirely a tissue of dreams; Tolstoy, the embodiment of health and Olympic vitality; Dostoevsky, the sum of energies charged with ill and possession; Tolstoy, who saw the destinies of men historically and in the stream of time; Dostoevsky, who saw them contemporaneously and in the vibrant stasis of the dramatic moment; Tolstoy, borne to his grave in the first civil burial ever held in Russia; Dostoevsky, laid to rest in the cemetery of the Alexander Nevsky monastery in St. Petersburg amid the rites of the Orthodox Church; Dostoevsky, pre-eminently the man of God; Tolstoy, one of his secret challengers.”

Tolstoy or Dostoevsky, George Steiner

Em Moscou eu estava relendo esse livro, e fui visitar as casas dos dois escritores com ele na cabeça.

Primeiro visitei a casa do autor dos Irmãos Karamazovi, em uma rua com o nome dele fora do que eram então os limites da cidade. Dostoiévski está associado com as Noites Brancas de Petersburgo, mas na verdade ele nasceu em Moscou, em uma ala do hospital para os pobres em que seu pai trabalhava.

Moscou apartamento Dostoievski exterior

É um apartamento pequeno – três comodos, a maioria com divisórias de madeira para que a família pudesse dormir com um pouco de privacidade. A antiga cozinha virou um espaço para palestras e exibições, que incluem uma página do rascunho dos Irmãos Karamazovi. Não se sabe se eles tinham um banheiro, o que ainda não era tão comum na época. É um lugar pequeno e mal iluminado, onde Dostoiévski viu, ainda criança, o pai ser chamado aos gritos para cuidar de uma menina de nove anos que tinha sido estuprada, uma amiga dele mesmo que morreu depois do ataque. O tema de homens mais velhos ameaçando ou atacando mulheres muito mais novas ou mesmo crianças seria um dos temas constantes na sua obra. A vida inteira ele odiaria a cor amarela, que era muito usada para pintar hospitais na época.

Moscou apartamento Dostoievski sala
Moscou apartamento Dostoievski quarto dos pais

No entanto, essa casa foi também a maior estabilidade que ele teve na vida. Foi onde ele lia em voz alta para a família as obras de Pushkin, Goethe, Schiller, Ann Radcliffe.

Aos 16 anos, ele se mudou para Petersburgo para estudar engenharia naval, e nunca mais conseguiu morar no mesmo apartamento por mais de três anos. Nos próximos anos ele perderia os pais e o irmão Mikhail, seria condenado à morte, com a pena comutada no momento da execução em trabalhos forçados na Sibéria, e viveria acossado por dívidas e tragédias pessoais. Mas vou falar um pouco mais sobre ele depois, e das suas pegadas em Petersburgo.

Moscou apartamento Dostoievski brinquedos
Moscou apartamento Dostoievski página Karamazovi
Página dos Irmãos Karamazovi

Em seguida, vou a Casa do Conde Tolstói, e só o caminho já é completamente diferente. O ônibus que eu peguei era o mesmo que tinha usado algumas semanas antes para ir ao Convento de Novodevichi, que Tolstói costumava visitar, um lugar lindo e arborizado. A própria casa foi escolhida pela família por causa do quintal enorme, onde eles fizeram um morrinho para poder deslizar de trenó. Em abril, quando eu fui, ele estava cheio de tulipas.

Moscou casa Tolstoi exterior
Moscou casa Tolstoi jardim

Por dentro, a casa é mais dividida. Os cômodos decorados por sua esposa, Sofia Andreevna são decorados com tecidos alegres, cores vivas, enquanto os cômodos do seu marido são bem mais ascéticos. Sofia procurava receber os amigos, ouvir música, e finalmente escreveu romances para mostrar sua frustração com o crescente dogmatismo do marido. Nessa parte reconheci muito o que Steiner fala de como Tolstoi destruiu aqueles próximos a ele com sua busca excessiva pela verdade. Ela abordou temas tabus na época, como a injustiça de uma sociedade que esperava que uma moça se casasse sem saber o que era sexo, mas que ela satisfizesse o marido, dos problemas da maternidade, e mesmo os filhos não queriam que ela fosse publicada para não comprometer sua reputação de esposa dedicada.

A divisão da casa me parecia também a divisão entre o homem que escreveu Anna Karenina e o homem que escreveu Sonata a Kreutzer (que Steiner chama uma violência do Tolstói-profeta contra o Tolstói-artista). Sou só eu que não consigo entender como o mesmo homem escreveu um livro tão profundo e esse panfleto misógino? Tenho que concordar com Doris Lessing: “At some point one does have to ask if perhaps the trouble was really a simple one: Tolstoy was no good in bed.”

Moscou casa Tolstoi sala
Moscou casa Tolstoi mesa com assinaturas da familia toda
Toalha de mesa em que uma das filhas de Tolstói bordou as assinaturas de todos da família

Na casa, Tolstoi tinha uma pequena oficina para produzir sapatos, enquanto na propriedade do campo ele fazia o trabalho de um camponês. Eu me admiro com o privilegiado que reconhecia a injustiça disso e queria um outro mundo. Ao mesmo tempo eu acho que tem algo de patético no aristocrata cercado de servos brincando de camponês. Principalmente quando comparo com a miséria em que Dostoiévski sempre viveu. No ateliê dele, fiquei completamente dividida entre os dois impulsos, cada plaquinha parecia me mandar para uma direção diferente. O que só fala da complexidade dele, eu creio.

O próprio Dostoiévski tinha um recalque com as condições de vida de outros escritores. Ele reconhecia o gênio de Tolstói e disse que Anna Karênina era uma obra que transcendia o que podia ser escrito na Europa Ocidental. Ele admirava os detalhes realistas que Tolstói conseguia colocar nas obras, como os dentes do conde Vronski. Mas ele também chamava a ficção de Tolstói de escritos de proprietários de terras, e lamentava não poder dedicar anos aos seus romances como o conde fazia.

Tolstói também admirava Dostoiévski, principalmente suas Recordações da Casa dos Mortos, e lamentava que eles não tinham se conhecido. Um dos últimos livros que ele leu antes de morrer foi Os Irmãos Karamazovi.

Moscou casa Tolstoi oficina de sapatos

Seja você um discípulo de Tolstói ou um fanático de Dostoiévski, vale a pena visitar as casas de ambos. São dois gigantes da literatura russa, cujas obras continuam a ser essenciais. A oposição entre eles é reconhecível em qualquer oposição entre autores, como Faulkner x Hemingway ou Ferrante x Knausgard. Quando for, não deixe de passar por aqui e contar para a gente qual é o seu preferido.

Se você está procurando livros desses autores para ler antes da viagem, recomendo as traduções diretas do russo que temos no Brasil. A maioria dos livros de Dostoiévski apareceu na Coleção Leste da Editora 34 em tradução direta, e aqui tem o link direto para suas obras no site da Editora. Crime e Castigo é um bom romance para começar, por sua ligação com a cidade de Petersburgo. Até fiz o itinerário do romance quando estava lá. Noites Brancas também é um bom começo, principalmente para quem vai na época delas, do meio de maio ao meio de julho. Outros dos meus preferidos são Memórias do Subsolo, Os Demônios, O Idiota e Os Irmãos Karamazovi.

Já do Tolstói, temos os grandes romances que saíram pela Cosac Naify (ainda dá para achar em sebos, mas geralmente custam uma pequena fortuna) e depois foram reeditados pela Companhia das Letras, todos com tradução de Rubem Figueiredo, como Anna Karenina, Guerra e Paz e os Contos Completos. Algumas novelas importantes também saíram em tradução direta pela 34, entre elas uma das minhas preferidas, A Morte de Ivan Ilitch.

Só como esclarecimento, o blog não ganha  nenhuma comissão com esses links, e eles só estão aí para divulgar os romances que amamos, para quem se interessar.

Clique na imagem para ler todos os nossos posts sobre literatura russa:

Ou nessa para ler todos sobre a Rússia:

4 comentários

Deixe uma resposta