Tangier – as atrações e desafios de uma cidade que costuma ser amada ou adiada

Eu coloquei Tangier no meu roteiro do Marrocos por causa da sua reputação literária. Nos anos 50 e 60, ela abrigou Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Tennessee Williams, Truman Capote. Paul Bowles foi quem ficou lá por mais tempo, vivendo na cidade por cinco décadas e usando-a em vários de seus romances. Mas depois ela quase saiu do roteiro, porque a maioria dos relatos que li em blogs de mulheres falavam que Tangier foi onde elas mais foram assediadas. A reputação era de uma cidade que as pessoas amam ou odeiam, e quando é assim, a gente sempre vai esperando ser a pessoa que vai dissipar todos os rumores ruins e mostrar como a cidade é maravilhosa.

Marrocos Tangier medina fonte

Marrocos Tangier vista para a Espanha
Um dos muitos lugares da medina de onde, em um dia claro, dá para ver a Espanha

Marrocos Tangier medina fonte

Quando eu finalmente cheguei em Tangier, a primeira boa surpresa foi o hostel, o Bayt Alice. A impressão era que ele era gerido por um grupo de expats que caçavam pela cidade todo tipo de antiguidades, e decoravam o albergue com portas pesadas de madeira, tapetes enormes, livros tanto de escritores marroquinos como os da Geração Beat. Era o que eu queria encontrar em Tangier. Recebi algumas recomendações deles e saí para explorar a cidade.

Comecei pelo Petit Socco, uma praça bem no centro da medina cujos cafés eram frequentados pela geração Beat. E onde em todos os cafés, tinha só homens sentados, e era só passar para alguns babacas me comerem com os olhos e começarem os gritos de “chica buena”. Tangier começou a pender para o lado do ódio. 

Marrocos Tangier medina petit socco

Depois fui subindo as escadas da medina até chegar no ponto mais alto, a Kasbah, também conhecida como Palácio do Sultão e que abriga o Museu de Artes e Antiguidades de Tangier. O palácio foi construído no século XIX em um estilo andaluz que me lembrou os grandes palácios que visitei em Marrakech. A exibição é dedicada a contar a história da cidade até o século XIX, e começa com a pré-história. Tangier foi fundada como uma colônia fenícia, em torno de mil anos antes da nossa era. A cidade era conhecida pelos gregos antigos, que acreditavam que Hércules tinha ido ao atual Marrocos em um de seus doze trabalhos: o décimo, de capturar o gado do gigante Gerião. Por causa da passagem de Hércules pelo país o estreito de Gibraltar ficou conhecido como Pilares de Hércules, e uma caverna perto de Tangier ainda é chamada de caverna de Hércules.

Depois o museu foca muito na época romana, em que Tangier era Tingis. Algumas das colunas usadas na construção do palácio são dessa época, como estátuas e um grande mosaico tirado de Volubilis.

Marrocos Tangier museu kasbah mosaico romano

Marrocos Tangier museu Kasbah patio

Também gostei dos grandes mapas de várias épocas, inclusive este do Mediterrâneo com a África em cima. Ele foi feito em Tangier em 1154. 

Marrocos Tangier museu arte kasbah mapa mediterrâneo com a áfrica em cima

Depois, muitas salas são dedicadas às artes e artesanato do Marrocos, como a caligrafia, e as que a gente vê no próprio prédio, como os mosaicos com azulejos e os tetos de madeira. Em Marrakech, eu fiquei com torcicolo tentando ver os tetos, e parece que não fui a única: aqui eles colocaram espelhos no centro da sala para a gente ver os tetos com mais conforto. 

Marrocos Tangier museu arte kasbah caligrafia

Marrocos Tangier museu Kasbah espelhos

Marrocos Tangier museu arte kasbah tetos

Do lado de fora, eles também tem um jardim em estilo andaluz.

Marrakech Tangier museu Kasbah jardim fonte

Eu saí do centro, indo para o lado de outra praça famosa, o Grand Socco, e o assédio continuou, tanto sexual quanto de “guias” que queriam que eu os seguisse. O nome da praça é uma corruptela de souk, praças com mercado, e hoje ela ainda é cheia de vendedores de todo tipo, e donos de restaurante que te seguem na rua com um menu. Por outro lado, uma das recomendações do albergue valeu a pena, a Cinemateca. 

Marrocos Tangier medina grand socco

Marrocos Tangier medina cinema rif

Eu continuei um pouco nessa área, passando por pequenas galerias de arte. No caminho entre o Petit Socco e o Grand Socco tem a Conil, e depois do Grand Socco tem o Instituto Cervantes, o Centre Culturel Ibn Khaldoun e a Galerie Delacroix. Todas alternam exposições temporárias, e todas tinham entrada gratuita quando eu estava lá, mas os horários era um pouco inconstantes. 

Marrocos Tangier galerie delacroix
Exposição que brinca com as máscaras africanas à venda nas lojas de souvenirs, na Galerie Delacroix

Também foi bom visitar a livraria Les Insolites, conhecida por sua importância para os intelectuais locais, que também tem exposições de arte temporárias. 

Marrocos Tangier les insolites livraria

Continuei para o Terrasse des Paresseux, nome de um terraço onde, em um dia de sol, dá para ver a Espanha e Gibraltar. 

Marrocos Tangier terrasse des parresseux vista para a Espanha

No dia seguinte, continuei a visita com outro dos museus mais famosos de Tangier, o American Legation. O Marrocos foi o primeiro país do mundo a reconhecer a independência dos EUA, em 1776, e essa casa foi a primeira propriedade oficialmente comprada pelo novo país fora dos Estados Unidos. Por 140 anos, serviu como consulado. Hoje, o prédio tem um museu dedicado às relações entre os dois países, incluindo um tapete marroquino com a bandeira dos EUA, as cartas de um diplomata desesperado depois que ele recebeu dois leões de presente e não tinha idéia do que fazer com eles, pinturas e desenhos de viajantes e, o que eu mais curti, uma ala dedicada a Paul Bowles. Tem muita informação sobre os projetos dele para preservar a música tradicional do Marrocos, e foi uma boa surpresa.

Marrocos Tangier american legation

Marrocos Tangier american legation ala paul bowles

No albergue, também recebi duas recomendações ótimas de lugares onde comer. O primeiro foi o Restaurante Ahlen, tradicional e muito gostoso. O segundo foi o Rubis Grill, um lugar de tapas. Ele é bem tradicional, então você pede uma bebida, e eles têm várias opções de vinhos e cervejas locais, e eles trazem pratinhos com vários tipos de comida, sem cobranças extras.

Marrocos comida típica provar tapas tangier

Eu também tentei achar alguns dos lugares mais simbólicos da Geração Perdida, como tinha feito em Paris. O motivo de a cidade ser tão popular entre eles é que ela tinha sido feita uma zona internacional pelas potências que colonizavam o Marrocos. A zona internacional é a inspiração da famosa Interzone do Almoço Nu de Burroughs, que se mudou para a cidade para escapar da justiça depois de acidentalmente matar a esposa tentando brincar de William Tell quando estava bêbado. Em 1954, a cidade voltou a pertencer ao Marrocos, e a reputação da cidade se tornou a de um lugar sem lei onde as pessoas vão para consumir drogas pesadas. Algumas figuras importantes de Tangier culpavam os beats por isso, dizendo que eles estragaram o que amavam, mas Paul Bowles já tinha dito em 1958 que na cidade “there is nothing left to spoil”. A verdade é que eles foram atraídos pela reputação de uma atmosfera de decadência, escreveram sobre ela, e apesar das décadas e de todas as tentativas de reforma, ela ainda tá lá. 

Eu visitei o Tanger Inn, o preferido Burroughs, e hoje ele é bem mais hipster, construído nessa imagem, com um lugar onde você podia tirar uma foto em cima de uma imagem de alguém com uma máquina de escrever. O Café Hafa, preferido dos Rolling Stones e dos Beats, tem fama de cobrar preços absurdos de quem não é local. O Hotel Muniria, onde Burroughs escreveu o Almoço Nu, fica em uma rua vazia e com cheiro de urina, e estava fechado. O Café Central no Petit Socco tem cara de não ter mudado nada desde a época deles, mas, como eu disse, costuma só ter homens sentados do lado de fora e tem uma atmosfera péssima. Ou a atmosfera mudou ou ela está lá, e os do segundo caso me fizeram pensar que era bem mais fácil ser beat sendo um homem do primeiro mundo. Porque acho que no fim procurar esses lugares só me fez ver que não tinha contradição entre a cidade ser conhecida pelos beats e contracultura e ser conhecida como capital do assédio.

Tangier vista da praia para a medina

Marrocos Tangier medina salon bleu

Marrocos Tangier medina ruas

Marrocos Tangier medina ruas

Marrocos Tangier medina porta

Marrocos Tangier medina 2

No final não amei nem odiei Tangier. Descobri muita história e arte alternativa, e isso me fez gostar da viagem. Mas realmente foi o lugar onde eu mais sofri assédio, e o único depois de semanas de homens me seguindo na rua onde eu passei por uma situação em que realmente me senti ameaçada, e entrei em um café pedindo para o garçom chamar a polícia. O garçom gritou com o cara em árabe e ainda me deu um chá de graça para melhorar o dia, então não é como se só tivesse assédio por lá. Mas mesmo assim, ouvi de tanta gente de falsos guias que te seguem até o seu hostel e ficam horas do lado de fora gritando que você deve dinheiro, mesmo se você estava andando na frente deles, eles não sabiam para onde você tava indo, e você não precisava de um guia. Vi muita gente usando crack na rua. O Marrocos é incrível mas não é relaxante, e Tangier foi o ponto alto disso. 

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