Acompanhando os blogs de diversas pessoas que entraram nessa jornada antes de mim, percebo que há um dilema comum na hora de ler um livro de Moçambique. Ler ou não ler Mia Couto? Os argumentos a favor são fortes. Ele é um escritor premiado, responsável por um boom da literatura africana e da lusófona em particular, muito amado pelo mundo todo. Os argumentos contra são os mesmos, que seriam motivos pelo qual ele é uma escolha óbvia. Se eu nunca tivesse lido um livro dele, teria aproveitado a chance, óbvio ou não. Como eu já tinha Terra Sonâmbula, resolvi aproveitar a chance de conhecer um pouquinho mais da produção do país.
O livro escolhido foi Niketche – Uma História de Poligamia, da Paulina Chiziane. Fiquei interessada pelo tema, e também pelo fato de que a autora foi a primeira moçambicana a publicar um romance.
Quanto ao tema, logo de início fica claro que ele não é exatamente sobre poligamia. A narradora é Rami, casada com Tony, um policial que raramente aparece na sua casa ou presta atenção aos filhos do casal. Ela sabe que ele tem uma amante, e decide confrontá-la, e assim descobre Juliana, com quem Tony também está há anos e com quem tem vários filhos. Só que na casa dela ela descobre que o Tony também não aparece há tempos, ocupado com a terceira, a Luisa. Depois ela descobre a Sally, e com ela a Mauá. No início ela se culpa pelas traições, e contrata um charlatão atrás do outro para trazer o amado de volta em três dias. Mas aos poucos as atitudes dela mudam.
O marido de Rami tem cinco famílias, mas isso não o torna exatamente um polígamo. Se fosse o caso, Rami diz, ela seria respeitada como a primeira esposa, teria ajudado a escolher as outras, que entrariam na vida do casal e não só na dele. E elas não entrariam como rivais, mas como parte da família. Na poligamia oficial, tanto ela quanto as outras esposas teriam mais direitos, e por isso ela se torna sua grande defensora. Alguns trechos do livro deixam claro que não é tão simples, mas de qualquer forma é por isso que ela decide subverter a relação com elas, aproximar-se delas, fazer com que elas se tornem aliadas.
Não é um processo fácil nem sem tombos. Em alguns momentos, ela sofre com os ciúmes, culpa as mulheres pelos feitiços que elas fizeram para atrair seu marido. Mas ela também faz de tudo para que elas possam conquistar a própria independência, o que tinha sido impossível até então. A interação delas permite que o leitor veja as diferenças culturais entre o sul e o norte de Moçambique, que elas discutem muito. Também permite que a gente veja o machismo estrutural da família que culpa Rami pelas infidelidades do marido, que acha que a esposa ideal é a que literalmente serve o marido de joelhos e lhe dá as melhores partes da carne. Eles também acreditam que as mulheres são malignas e têm uma propensão para causar o mal em seu redor – só encostar em uma mulher traz azar – e por isso criam rituais de purificação como o horror ao qual uma viúva é submetida.
Outra discussão interessante feita no livro é a da lei e da religião impostas pelos portugueses, e seus efeitos nas pessoas. A poligamia foi proibida, mas um homem ter quatro famílias ilegítimas é visto como natural – Tony diz que são as mulheres que são infiéis, e os homens são livres. Com isso, há uma aparência de religiosidade enquanto a situação das várias mulheres e filhos só piorou.
Achei que o livro em alguns momentos foi um pouco repetitivo, mas adorei a história e as reflexões que ele proporciona, e foi uma leitura muito interessante.
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