Obshejite: o bom, o mau e o feio de morar em um dormitório para estudantes em Belarus

Os dormitórios pós-soviéticos são bem famosos – e às vezes infames – entre os estudantes de russo. Então resolvi fazer um post sobre eles – como funcionam, com base na minha experiência em Minsk estudando russo, e o bom, o mau e o feio de morar em um.

Como funciona:

Geralmente existem três tipos de dormitório:

O “tipo corredor”, onde você vive em um quarto que dá para um corredor, com banheiro e cozinhas coletivas. O mais importante nesse tipo é lembrar de não deixar nada para trás: você vai ao banheiro, leva seu papel higiênico, e traz de volta, ou você fica sem papel higiênico. 

O “tipo bloco” significa que você tem dois ou três quartos por bloco, cada um para de duas a quatro pessoas, e vocês dividem uma cozinha e dois banheiros, geralmente um com o chuveiro e um com a privada.

O “tipo apartamento” é realmente como um pequeno apartamento, ou um estúdio, com um quarto, cozinha e banheiro.

Em Minsk, a MGLU, a universidade em que eu estudei, tinha um dormitório estilo corredor no centro, e um estilo bloco, no sul da cidade, perto da estação de metrô. Em Tallinn, onde também fiquei em um dormitório quando fiz parte da Summer School, também fiquei em um dormitório estilo bloco. Muitas vezes, as universidades tem todas as três opções, e você pode escolher o que prefere. Para estudantes estrangeiros estudando russo na MGLU, eles só oferecem os aptos em bloco para estudantes de graduação, com quartos para duas ou três pessoas. Os quartos para estudantes de pós, que não são compartilhados, não ficam disponíveis para nós.

O bom:

A melhor parte de morar na obshejite para mim era o preço. Ela custava cerca de 100 rublos por mês, cerca de 30 euros, o que significa que nos 14 meses que morei em Belarus, em paguei 420 euros – mais 3 meses lá e eu passaria de 500, passando o que eu pagava por mês em Bologna, na Itália. Tudo bem que em Bologna eu tinha um quarto só para mim, mas a diferença ainda é brutal. E as meninas locais pagavam um terço disso.

O segundo lado bom, é que morar na obshejite tira muitas das burocracias da vida em Belarus. E não tô nem pensando em achar apto, negociar com proprietário, pagar conta, mas no mais básico mesmo: visto, documentos. Em Belarus, você tem que se registrar quando chega no país (um processo parecido com o permesso di soggiorno, que também tive que fazer na Itália), um processo que todo estrangeiro que eu conheço descreve como um inferno burocrático. A única exceção é para quem mora na obshejite: nesse caso, a faculdade faz tudo por você, e inclusive os seus documentos chegam lá. Depois da Itália, fiquei impressionada com como foi tudo fácil.

Quando eu cheguei em um apto onde já tinha quatro meninas, achei que a maior dificuldade seriam as colegas, e dividir quarto com mais duas meninas que eu nem conhecia, mas foi tudo bem tranquilo. Você tem que ser flexível para morar com tanta gente, claro, mas não é um bicho de sete cabeças, e foi bom imediatamente conhecer gente que falava inglês e podia bater papo, e gente que falava russo e podia me ajudar a praticar. Em todo o tempo que estive lá, dividi o apto com 9 meninas, e quase todas foram tranquilíssimas, só uma foi difícil – mas vou falar disso daqui a pouco.

O mau

O lado ruim de viver no dormitório era viver com regras pensadas para adolescentes. A universidade tinha um toque de recolher a meia noite, e regras que proibiam consumir álcool lá dentro. Eu logo que vi que eles não levavam essas regras tão a sério – eles não podem legalmente te impedir de entrar no prédio se você chegar fora de horário, e alguns porteiros reclamam um pouco, mas a maioria nem fala nada. E eles se preocupavam ainda menos com essas regras conosco – os alunos estrangeiros que não estavam nem perto de serem adolescentes. Absolutamente toda vez que fizeram uma inspeção no meu quarto, eles acharam as garrafas de vinho, que nós nunca tentamos esconder. E uma vez eles acharam o armário de festa – com vodka, tequila e gin. Eles sempre riram disso, e brincavam que a gente tinha que esconder melhor o nosso álcool. Uma vez que a gente respondeu que eles já sabiam, então para que esconder, eles responderam que tinham medo de alguém ficar sabendo e roubar nosso álcool. Depois dessa, realmente escondemos um pouquinho melhor.

E tem duas questões para pensar se realmente vale a pena morar na obshejite: como brasileiros, a gente pode fazer cursos em Belarus por 90 dias sem visto. Mas para morar lá, a gente precisa do visto. Então quem faz cursos de curta duração precisa considerar, para ver se compensa.

Outra parte difícil, é que a cozinha vem com armários, fogão e geladeira, e só. Cheguei e tive que comprar prato, talheres, panelas, tábua de cortar, copo, tudo. Morando lá por um ano e pagando pouco pelo dormitório, não foi um problema, mas é bom falar para que quem tá indo para ficar por pouco tempo, e para quem quer se programar antes de ir.

Eu no primeiro dia comprei comida, imediatamente quebrei a regra do álcool, e comprei um abridor de vinho, enquanto ainda tava usando os talheres de plástico do buffet de salada do supermercado para cortar legumes. Prioridades.

O feio

Para começar, vamos falar de novo de colegas de quarto, porque essa sempre pode ser a melhor e a pior parte de morar com outras pessoas. Depois de várias experiências boas, eles me colocaram com uma menina que, apesar de ter 25 anos, nunca tinha morado sem a mãe, e dava para ver. Não sabia fazer a cama, deixava comida estragar na geladeira, fazia ligações para o namorado que duravam quatro, cinco horas, dentro do quarto em comum, e achava que eu era uma ditadora porque eu pedi para ela ouvir música com fones. Bem cedo a gente perdeu a paciência uma com a outra, e ela pediu para mudar. E a administração fez tudo o que pode para complicar esse processo. A decana da faculdade, professora Rudenko, chegou a falar que ela ter carne estragada na geladeira não colocava ninguém em risco, só fedia, enquanto o meu modem colocava todo mundo em risco, porque Wi-Fi faz mal para a cabeça. Tive que ouvir isso em 2022. E também falou que eu devia ter ensinado que carne na geladeira depois de dez dias apodrece. E quando reclamei que colocaram uma menina comigo sem fazer isolamento, esquecendo as regras da OMS, a responsável pela Obshejite me perguntou ironicamente se eu era médica, berrou comigo e me falou que eu estava tentando “enganá-la” porque eu queria o quarto só para mim. Ou seja, enquanto estiver tudo bem, ok, mas se você precisar de qualquer coisa, não conte com a administração.

Mas outra parte feia, e uma reputação que você já ouviu se já conheceu alguém que morou em um dormitório assim, é o das baratas. Já ouvi um milhão de piadas a respeito, e comentários como “você vai viver em uma obshejite?? Espero que você não tenha medo de baratas…” E não é só um estereótipo: geralmente os prédios são enormes, e elas rapidamente infestam tudo.

Quando eu me mudei para Minsk, fiquei dez dias em isolamento covid, e não vi nenhuma barata. Aí me mudei para o apto onde deveria morar permanentemente, onde já tinha quatro meninas, e vi que elas infestavam a cozinha. Eu falei com voz de choro para uma das meninas “tem baratas na cozinha”, e ela me respondeu como se eu tivesse dito que na cozinha tinha uma geladeira: “sim, eu sei”. As meninas me falaram que naquela manhã as funcionárias da obshezhite tinham colocado veneno na cozinha, e por isso as baratas estavam meio loucas. Que geralmente não era tão ruim, de entrar na cozinha e ver elas andando nas paredes. De matar 8 enquanto a gente tomava café da manhã. Um dia, o fogão quebrou, e um funcionário do dormitório veio trocá-lo. Quando ele abriu o fogão, começaram a sair tantas baratas que ele entrou em pânico e saiu do apto correndo. Minha colega de quarto alemã estava em casa, ela calmamente sentou na cozinha e durante duas horas matou as baratas que saíam do fogão, em grupos de oito a dez. Ela contou, porque achou graça, e no final do dia tinha matado mais de cem. Quando ela me contou, eu pedi desculpas que ela teve que fazer isso sozinha, e ela, que me conhecia há dias, entendeu instintivamente qual teria sido a minha reação “você teria era dado trabalho chorando no corredor, melhor eu sozinha!!” Ainda bem realmente que alguém no apto achou graça na situação.

Realmente, foram os piores dias que eu já vi por lá, de longe. Depois da primeira semana, a gente não via tantas baratas no apto. Pouquíssimas vezes eu vi uma fora da cozinha. Uma parte do armário tinha sempre algumas, então a gente não colocava nada lá. E de 1 da manhã às 8, você sempre via alguma, então a gente não entrava na cozinha. A gente sabia que elas estavam lá, a gente não precisava ver todo noite. Eu e minhas colegas de apartamento em algum momento passamos a nos referir a essas regras estranhas e meio arbitrárias como “o contrato” e “o pacto”. Quando uma menina nova chegou, em junho, e falava das baratas, a gente respondia “mas você quebrou o pacto, você abriu o armário das baratas, e eram 2 da manhã, nesse horário a cozinha é delas, a gente nem entra!!” Ela falava que a gente tinha síndrome de Estocolmo com as baratas, e errada não tava. A gente tinha desistido há muito tempo de guerrear com as baratas, já que elas infestam o prédio todo, e um apto sozinho não tem chances na guerra. A gente tinha se resignado ao pacto.

Deixe uma resposta