Altar de Gent – visitando a obra de arte mais roubada da história

Uma série de pinturas feitas na Bélgica quinhentos anos atrás é até hoje famosa por causa de sua história turbulenta. Como se não bastasse ser reconhecido como uma das obras primas do renascimento flamengo, ainda é a pintura mais roubada da história. Durante os séculos desde que foi feita, as pinturas foram o butim de mais de uma guerra, o alvo de mais uma conspiração, e o sonho de consumo de mais de um nazista. Então vamos contar um pouquinho da história cheia de reviravoltas do Altar de Gent.

Os quadros do Altar de Gent foram feitos entre 1420 e 1432, pelos pintores Hubert e Jan van Eyck. Eles foram feitos, como o nome diz, para o altar de uma igreja, a de São Bavo em Gent. E como era comum das pinturas de altares da época, elas foram feitas de forma que a obra pudesse ser fechada. Ele só era aberto em dias de festa em Gent. 

A obra era feita de 24 painéis, 12 que apareciam quando ela estava aberta, e 12 que apareciam quando ela estava fechada. As pinturas a mostra quando o altar está fechado mostram nos painéis de baixo as figuras de São João Batista e São João Evangelista, e nos painéis de fora, Joost Vijdt e sua esposa Lysbette Borluut, os mecenas que encomendaram a obra. Nos painéis de cima tem uma anunciação, com Maria e o arcanjo Gabriel, e ainda mais para cima, profetas e sibilas.

Créditos: wiki commons

Enquanto isso, as pinturas dos painéis a mostra quando ele estava aberto representam a deesis de Cristo, ou seja, mostram ele no trono com um livro, acompanhado de Maria e São João Batista. Ele é cercado por anjos tocando música e pelas figuras de Adão e Eva nos painéis externos. 

Deesis de Cristo, Créditos: wiki commons

Os painéis de baixo mostram um encontro de santos e do povo adorando o Cordeiro de Deus, um apelido para Jesus que aparece no Evangelho de João, e que era um tema comum de pinturas do renascimento. Ele é cercado por mártires, santos e figuras da igreja.

Créditos: wiki commons

A pintura mais roubada da história

A primeira vez que a pintura foi roubada foi quando Napoleão invadiu a Bélgica, e a levou de volta como butim. A obra foi exposta por anos no Louvre depois disso, mas devolvida depois que Bonaparte perdeu a Batalha de Waterloo, também na Bélgica, em 1815. Mas a diocese de Ghent passava por um momento financeiro difícil, e penhorou alguns dos painéis laterais. Quando eles não conseguiram pagar a dívida, eles foram vendidos para um colecionador inglês, e depois para o Imperador Frederick William III da Prússia.

Enquanto isso, as pinturas que ficaram em Gent foram afetadas por um incêndio, e as imagens de Adão e Eva foram separadas das outras e mandadas para um museu em Bruxelas. 

Créditos: wiki commons

Depois, na Primeira Guerra Mundial, a Bélgica foi invadida pela Alemanha e as pinturas foram roubadas da igreja. Quando a Alemanha perdeu a guerra, elas foram devolvidas, assim como cópias de alta qualidade dos painéis feitas na Alemanha. Como forma de reparação pelo roubo, as pinturas que tinham sido compradas e estavam na Alemanha também foram devolvidas a Gent.

Em 1934, as pinturas de São João Batista e a conhecida como Os Bons Juízes foram roubadas da Igreja. A única coisa que o ladrão deixou no lugar foi uma nota dizendo “Levada da Alemanha pelo Tratado de Versalhes”, então claro que as suspeitas ficaram em algum alemão que não gostou de como a guerra terminou. Depois as autoridades receberam um pedido de resgate de um milhão de francos, e, depois de uma troca de cartas, o ladrão devolveu o São João Batista, mas ninguém nunca descobriu a sua identidade ou o paradeiro do outro painel. A não ser que você seja um fã de Camus, porque aí você sabe que tá no apartmento de Amsterdam de Clamence.

Créditos: wiki commons
Créditos: wiki commons

Quando a Segunda Guerra estava começando, os belgas, com medo de outra invasão alemã, mandaram as pinturas para serem guardadas no Vaticano. Elas ainda estavam à caminho, atravessando a França, quando a Itália entrou na guerra do lado da Alemanha. Com isso, não era mais seguro que as pinturas continuassem no caminho, e elas foram guardadas em um museu em Pau, na França. Representantes dos governos belga, francês e alemão assinaram um tratado prometendo não mudar as pinturas de lugar sem o conhecimento dos outros dois, mas Hitler não respeitou o acordo, e ordenou em 1942 que elas fossem levadas para o Castelo de Neuschwanstein, aquele do sul da Alemanha que inspirou castelos da Disney. Depois da guerra, ele queria que ela fosse a peça central de um grande museu em Berlim, apesar de Göring, que a queria para sua coleção pessoal. Hitler queria tanto o altar que Goebbels mandou detetives para Ghent para tentar achar o painel que tinha sido roubado. Ele achava que a pintura nunca tinha sido tirada da Catedral, uma teoria que continua popular – depois da guerra, ela foi completamente vasculhada seis vezes tentando encontrar a pintura, inclusive com um raio-x.

No final, como a Alemanha estava perdendo a guerra, as pinturas acabaram sendo movidas para as minas de sal de Altaussee, onde os alemães esconderam centenas de obras de arte roubadas em toda a Europa. Lá, elas sofreram muito dano por causa da umidade, mas sofreram um risco ainda maior: os nazistas encheram as cavernas de explosivos, ameaçando explodir algumas das obras de arte mais importantes de meia Europa se os aliados chegassem perto. Foi uma corrida contra o tempo dos aliados para tentar chegar às cavernas antes que alguém acionasse os explosivos, e foi a coragem de trabalhadores das minas locais que as salvaram, quando eles desarmaram os explosivos. Elas foram devolvidas graças aos Monuments Men, o departamento do Exército dos EUA que tentava devolver a arte roubada – e que depois viraram personagens de um filme com George Clooney, Matt Damon e Cate Blanchett. Mais de metade das obras roubadas porém nunca foi devolvida, ou porque a pintura desapareceu, ou porque os donos foram todos assassinados.

Detalhe incrível dos anjos cantando. Créditos: wiki commons

Depois da guerra, elas foram expostas novamente em Gent. Se você conseguiu manter a conta, foram sete roubos, parte de 13 crimes contra elas desde sua instalação, inclusive tentativas de destrui-las durante momentos de iconoclastia.

Aquelas cópias de alta qualidade que os alemães tinham feito durante a primeira guerra acabou sendo a base para uma cópia de Os Bons Juízes feita pelo artista belga Jef Van der Veken, que hoje faz parte da exposição.

Por causa do tempo nas minas de sal, a pintura teve que passar por um projeto ambicioso de restauração. Foram oito anos e dois milhões de euros, e só em 2020 as pinturas voltaram a ser exibidas, um pouco antes de quando fui à Bélgica. Também houve muita discussão sobre onde elas seriam exibidas, mas hoje ficam na Igreja de São Bavo,  a mesma para a qual foram feitas, em uma enorme estrutura de vidro que permite que a gente dê a volta na pintura e veja os painéis dela aberta e fechada.

A reforma também trouxe uma controvérsia que chega a ser engraçada. É que uma pintura tão antiga já foi restaurada várias vezes ao longo dos séculos, algumas vezes por gente que não sabia bem o que tava fazendo, ou por pessoas que tentavam fazer a pintura mais atual. A idéia de que ela tem que ser preservada exatamente como Van Eyck fez é um paradigma mais moderno que a gente imagina. De qualquer forma, hoje a tecnologia nos permite atravessar as camadas de tinta e ter uma imagem muito aproximada de como ela era quando foi terminada, e retorná-la a essa condição. E quando eles fizeram isso, eles descobriram que o Cordeiro de Deus tinha uma face humana que deu pesadelos em muitos admiradores de arte. 

Créditos: wiki commons
Créditos: wiki commons

A pintura do Cordeiro de Deus tem 1,34 metro por 2,37, então acho que a maioria das pessoas nem nota o Cordeiro, a não ser que elas tenham acompanhado toda a polêmica de gente nos jornais reclamando de como ele era assustador. Mas tem muitos detalhes que valem a pena na pintura, além desse – por exemplo, Van Eyck é conhecido como um dos primeiros pintores a retratar as crateras da lua, que também dá para ver nessa pintura. Além disso, ele às vezes ajustava a tinta na tela com os dedos, então se você prestar atenção, pode achar pedaços de pêlo do pincel ou impressões digitais.

Como o espaço é limitado, apenas poucos visitantes entram por vez. Então se você quer ver o altar de Gent, o melhor a fazer é reservar seu ingresso com antecedência no site oficial. Ou o risco de perder a oportunidade de imaginar roubos planejados por nazistas e ver um cordeiro antropomórfico é inteiramente seu.

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