Museu da África em Bruxelas – um museu tentando se descolonizar?

Quando eu fui para a Bélgica, estava participando de um congresso sobre colonialismo, e um estudo de casa que debatemos muito foi o Museu Real do Centro da África, mais conhecido como Museu da África, em Bruxelas. O museu tem uma história muito complexa de uma relação íntima com o colonialismo, e recebeu muitas críticas por isso ao longo da sua história. Por isso quando ele fechou há alguns e fez uma reforma enorme, tentou lidar com esse problema. E os nossos debates eram realmente para perguntar se ele conseguiu ou não se descolonizar, e se isso é possível.

O contexto do museu

O Museu surgiu junto com a colonização belga no Congo, e como forma de mostrar para os belgas a sua “missão civilizadora”, a desculpa européia para  colonialismo, que eles estavam lá em uma missão quase de caridade, levando a civilização e o cristianismo. Ou seja, o museu começou tendo um lado muito definido, muito parcial, e com um objetivo político claro. O museu foi expandido alguns anos depois, em 1897, quando a Bélgica abrigou uma Exposição Internacional: foram trazidos animais, produtos como café e tabaco, e foram trazidas pessoas, criando um “zoológico humano” do lado de fora do museu. Ele teve um milhão de visitantes. Em 1958, Bruxelas abrigou uma nova Exposição Internacional, com um novo Zoológico Humano.

Zoológico humano em Bruxelas, 1956. Crédito: wiki commons

Em 2002, saiu o livro Os Fantasmas do Rei Leopoldo, de Adam Hochschild, que causou muita controvérsia. Ao contar toda a brutalidade da colonização belga, o verdadeiro genocídio que aconteceu, a mutilação de pessoas, inclusive crianças, que não trouxesse a quantidade de borracha estabelecida, a população reduzida a escravidão, inclusive escravidão sexual, o livro se tornou um contraste enorme com o museu, que ainda contava aquela história da missão civilizadora, e não falava nada sobre o pilhagem e a violência do colonialismo. O autor mesmo conta sobre visitar o museu, dizendo “era como se o museu do judaismo de Berlim não falasse do Holocausto”. Foi aí que começou a luta para descolonizar o museu, mas a gente pode perguntar se tem jeito de fazer isso, para começar. Como apontaram os professores do meu workshop, os objetos foram trazidos para a Bélgica no contexto do colonialismo, o museu só existe porque foi criado para justificar o colonialismo. Então como ele pode ser descolonizado?

A visita hoje em dia

Hoje, quando a gente entra pelo museu, a gente não entra pelo prédio original, mas por um prédio moderno construído ao lado. A primeira obra que você vê é um gigantesco barco de madeira, ao lado da frase: “tudo passa, exceto o passado”. Parece uma promessa boa de reconhecimento do passado do museu.

Depois, a primeira sala que a gente vê, ainda no prédio moderno, é a sala das estátuas tiradas da exposição normal porque eram consideradas ofensivas. As estátuas que mostravam africanos como preguiçosos, bêbados, ou como “selvagens”. E aqui já é uma polêmica, porque para alguns historiadores é uma tentativa do museu de pagar de neutro, de mostrar as estátas ofensivas sem falar que tá mostrando. Por outro lado, tem gente que defende falando que o museu não tem que esconder a forma como eles costumavam mostrar a África, mas ser aberto sobre isso, e na verdade teria era que ter mais explicações, para que quem não estuda história também entenda a história que o museu tentava contar com essas estátuas. Mas nessa parte tem algo que acho brilhante, a pintura Reorganização, de Chéri Samba. Ela mostra algumas das estátuas, inclusive a de um homem vestido com pele de pantera, uma das mais famosas do museu, com alvo de disputa entre vários grupos, enquanto o diretor do museu olha, com os braços cruzados. Realmente, a remodelação do museu foi alvo de disputa forte entre grupos de congoleses e de descendentes, e do chamado “lobby colonial”, pessoas que trabalharam no Congo antes da sua independência, em 1960, e acusam quem tenta desconstruir a narrativa de missão civilizadora de serem “politicamente corretos” e tentarem “reescrever a história”. O quadro meta falando dessa briga, e com a crítica ao museu na figura do diretor, é muito interessante, mas sem a guia, talvez fosse impossível de entender.

Daí começamos o tour pelo museu. Assim que a gente entra pelo museu, tem um painel dedicado aos soldados que morreram no processo de colonização do Congo, aqui também algumas tentativas foram feitas de contar o outro lado. Um artista convidado escreveu sete nomes no vidro, que, quando a luz está certa, são projetados na parede: o nome das sete pessoas que morreram de doença ao serem trazidas para o zoológico humano de 1897. É complicado, são apenas sete, mas a gente não sabe o nome dos milhões que morreram durante o colonialismo. 

Uma outra artista também fez uma intervenção nas paredes do museu: ela colocou fotos de mulheres, no centro ela mesma, sua mãe, e sua avó, as mulheres africanas cuja história o museu não conta.

Esse é um dos pontos fortes do museu hoje, em vários momentos, ao lado de objetos trazidos durante a colonização, eles colocaram obras de artistas africanos atuais, que conversam com elas. Uma das partes que eu achei mais interessante era o antigo hall de entrada do museu, uma sala redonda decorada com estátuas de bronze que mostram os colonizadores bonzinhos ajudando crianças africanas. Ao invés de retirá-las, o museu as cobriu com painéis de tecido desenhados por artistas africanos. Você pode até levantar os painéis e ver as estátuas originais, e consegue interagir assim com as duas camadas de história. No centro da mesma sala, a estátua Nouveau souffle ou le Congo bourgeonnan de Aimé Mpan, encomendada para a reabertura do museu.

Isso em alguns momentos era bem interessante, fazia com que o museu saísse um pouco da imagem da África como parada no passado. Quando eles falavam de saúde, falando de curandeiros e remédios tradicionais, tinha também um quadro fazendo referência a como o neoliberalismo afetou os hospitais de hoje. Quando eles falavam de religiões tradicionais, também tinha um quadro falando da explosão de igrejas evangélicas hoje em dia.

Um dos pontos mais criticados da exposição atual é que grande parte do museu continua a ser dedicada à história natural. Uma das exposições que mais traz visitantes são os gigantescos animais empalhados, e eles continuam lá. As comunidades de descendentes de congoleses queriam que os animais fossem colocados em um outro museu. Afinal, a gente consegue imaginar um Museu da Europa, que falasse sobre os “povos tradicionais”, com um esquilo empalhado no meio? Falar de “África” como um todo, com a natureza e o povo de uma vez, não é ainda a obra da branquitude que se pensa universal, e pensa tudo em outros continentes como “o outro”?

Outra controvérsia é dos objetos estarem expostos em primeiro lugar. Alguns deles, como as máscaras africanas, foram feitas para ritos religiosos. E algumas pessoas ainda consideram um desrespeito que elas sejam expostas assim. Por isso, alguns dos ativistas que querem que os objetos sejam devolvidos não querem que eles sejam enviados para museus africanos, mas que eles sejam ressocializados, usados como eles foram feitos para ser.

Outra crítica, apontada entre outros por Adam Hochschild, o autor dos Fantasmas do Rei Leopoldo, é que a linguagem no museu continua muito leve, pseudo neutra, com frases como “o colonialismo continua a ser um tema controverso”. Acima de tudo, nada no museu associa a exploração do Congo à riqueza da Bélgica atual. Foi a exploração do Congo que pagou pelas Arcadas do Cinquentenário, um dos pontos turísticos mais famosos de Bruxelas. Muitas das famílias mais ricas da Bélgica tem fortunas que vêm dessa época.

Semáforo congolês, mostrando um pouco do Congo hoje.

No final, não achei que o museu tenha se descolonizado, nem acho que isso seja possível. Não dá para desfazer a história. Descolonização é um processo impossível de terminar, e perigoso de pensar como terminado. Tem algum esforço sendo feito, que em alguns momentos dá resultados muito interessantes, em outros parece menos que o mínimo. Mas foi legal ver como o museu tá começando a fazer essa reflexão e, principalmente, ver como a discussão sobre o colonialismo avança um pouco que seja na sociedade belga.

O artigo de Hochschild sobre o novo museu, que eu mencionei, tá disponível online, e é só clicar aqui. O livro dele também foi publicado em português, mas atualmente tá esgotado.

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