Petersburgo – uma cidade russa ou uma cidade européia?

O tsar Nicolau II teria dito que São Petersburgo era na Rússia, mas não era russa. Faz sentido que ele pensasse assim, tendo vivido naquela época e naquela posição. Ele enfrentava protestos frequentes na cidade, principalmente do Soviete (conselho) de Petersburgo, que era muito ativo. Foi lá que aconteceu o Domingo Sangrento, quando os guardas do Palácio de Inverno massacraram uma multidão que protestava pacificamente, cantando “Deus salve o tsar”. Foi lá que aconteceu o “ensaio geral” da Revolução, em 1905. Para ele, Petersburgo era revolução e ateísmo, enquanto Moscou era tradição e cristianismo ortodoxo – e isso seria a Rússia verdadeira.

O avô de Nicolau II, Alexandre II, tinha sido assassinado em Petersburgo, o tsar mandou construir a Igreja do Salvador Sobre o Sangue Derramado no lugar onde aconteceu o atentado contra ele. Nicolau fez um concurso pedindo por igrejas no estilo “nacional”. Os arquitetos que participaram não tinham muita noção do que ele queria dizer com isso. A maioria deles pensou que eram igrejas brancas, no estilo inspirado em Bizâncio, como o Kremlin de Moscou. Apenas algumas décadas antes, quando Nicolau I mandou construir uma igreja em estilo nacional, elas tinham sido a inspiração.

As igrejas do Kremlin, que os arquitetos tomaram como base para os planos

Só um deles entendeu o que Nicolau queria, o estilo medieval russo, com as cúpulas de cebolas, inspirado na Catedral de São Basílio, em Moscou. A intenção era honrar um período que ele via idilicamente como a época de ouro dos Romanov. Com isso, ele quebrou as regras estabelecidas por Pedro I quando planejou a cidade, de que ela teria prédios barrocos e neoclássicos. Então a Igreja é mais moderna que o redor e feita em imitação de um estilo antigo que os governantes vêem como um tempo de grandeza, exatamente o mesmo que acontece, por exemplo, no Bairro Gótico de Barcelona, e que faz com que turistas reclamem que a cidade é pouco autêntica. Mas, em Petersburgo, muitas vezes acontece o contrário, e os turistas acham que a Catedral é muito mais autêntica do que os prédios em estilo mais “ocidental”. Por quê?

A igreja de São Basílio, em Moscou, outra inspiração possível para o “estilo russo”
A Catedral do Sangue Derramado, em Petersburgo

Eu acho que parte disso é Orientalismo, como definido por Edward Said. É uma noção baseada nas representações paternalistas do oriente feitas no ocidente. É uma exageração da diferença, uma crença implícita na superioridade do Ocidente, o uso de clichês em modelos analíticos. Em sua origem, esse modo de pensar está ligado ao colonialismo, mas ele ainda persiste.

A imagem da Rússia no Ocidente é das cúpulas em formato de cebola da Catedral de São Basílio, e quando as pessoas vão para Petersburgo e encontram uma cidade cheia de construções barrocas, com prédios que poderiam estar em grandes cidades do Ocidente, elas têm uma escolha. Ou elas podem reconsiderar a imagem mental que tinham, ou podem descartar a evidência nova e dizer que Petersburgo é européia e não russa, reforçando a idéia de que existe uma oposição entre os dois termos. 

Quando a gente estuda antropologia, a gente vê que não existe o que a gente imagina como “cultura pura”. Toda cultura é feita de encontros, influências. As igrejas do Kremlin, que são vistas como o outro exemplo de cultura russa medieval, foram construídas principalmente por arquitetos italianos, e tem uma influência clara da cultura bizantina. Petersburgo foi construída drenando um pântano, com centenas de camponeses fazendo trabalho forçado e morrendo debaixo da cidade, que então foi construída em cima dos seus corpos, e por isso é um dos maiores símbolos da Rússia do século XVIII. Os palácios da nobreza podem parecer “cópias” de palácios da Europa ocidental, mas o que eles mostram são encontros, influências, que contam a história do que a Rússia era – e da imagem que queria passar – durante os séculos seguintes. Inclusive, quando um tsar resolveu mudar essa imagem e construiu a Catedral do Sangue Derramado. Para mim, isso não torna nenhum lugar mais ou menos “russo”, só nos conta uma história do país que é diferente da história que a gente aprende andando por outras cidades russas, ou da história que a gente tinha nas nossas cabeças.

Ou, pelo menos, essas foram as minhas reflexões quando passeando por lá.

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