Como viajar me deu mais histórias sobre os “Países muçulmanos”

Quanto mais eu viajo, mais me incomoda ver como as pessoas falam dos tais “países muçulmanos”. Tem uma tendência nossa a agir como se eles fossem todos iguais, ou explicar tudo por eles serem muçulmanos, e isso me incomoda muito. Eu já fui em vários países de maioria muçulmana, como a Bósnia, a Turquia, o Marrocos e o Azerbaijão e eles tinham bem pouco em comum. Se eu fosse para o Irã, como já tinha passagem mas cancelei por causa do coronavirus, a Arábia Saudita, a Indonésia, o Paquistão e o Líbano, encontraria ainda visões, leis e costumes diferentes. Por isso quero falar um pouco sobre o que eu aprendi nessas viagens.

Pensar nisso me fez lembrar da famosa palestra da Chimamanda, o Perigo de uma História Única. Ela conta sobre como as pessoas costumam ter uma só história sobre a África, que é sobre pobreza. Ela conta sobre quando entrou na universidade, e a colega dela presumiu que ela não sabia ligar o fogão, perguntou sobre a música da “tribo” dela, e falou que ela falava inglês bem e não entendeu quando a Chimamanda respondeu que inglês era a língua oficial da Nigéria. Que um professor falou com ela que as histórias dela não eram “autenticamente africanas” porque tinham gente de classe média, que não passava fome. E que ela entende isso, porque a própria Chimamanda cresceu com mais histórias sobre a Inglaterra ou os EUA, onde moravam as pessoas dos livros que ela lia, do que sobre a África. E ela também ficou surpresa quando viu gente pobre que produzia arte – a história única que ela tinha deles era da pobreza, e fazer arte parece bem diferente.

Ela fala que histórias únicas viram estereótipos, e estereótipos nem sempre estão errados, mas eles são incompletos. A história única que a mídia nos dá sobre muçulmanos é sobre terrorismo e mulheres oprimidas. E isso é infelizmente verdade em muitos lugares, e afeta muitos muçulmanos, mas não é a única história sobre eles, que, afinal, são quase um bilhão de pessoas.

Torre da donzela vista Baku 2
Baku, no Azerbaijão

A primeira vez que eu fiz amigos próximos muçulmanos foi quando eu fiz trabalho voluntário em Praga. Eu convivi com muçulmanos de Montenegro, da Indonésia, do Marrocos e do Egito. E pode parecer óbvio, mas tenho que falar que eles eram completamente diferentes, inclusive na forma como se relacionavam com a religião. Alguns bebiam, comiam carne de porco, iam para baladas para pegar alguém. Alguns, não. E isso nem devia me surpreender, porque eu também conheço cristãos que transam antes do casamento e tem tatuagens e outros que não. A maioria dos meus amigos cristãos acham que defender o casamento LGBTQI+ no século XXI é a postura mais cristã. Mas me surpreendeu ver que existe a mesma diversidade entre muçulmanos, e me fez pensar na necessidade de mais histórias sobre eles.

O atentado terrorista contra o Charlie Hebdo tinha acabado de acontecer, então era um assunto que surgia muito. Eu me lembro de conversar com amigos do Brasil que tinham uma postura um pouco de “claro que a violência é errado, mas para que ofender as pessoas”. Meu amigo do Egito ficou muito ofendido quando ele me perguntou o que as pessoas estavam falando e eu contei isso. Ele falou que ele não acampou por um mês na praça Tahir para ver gente defender censura no nome dele. Que ele achava isso uma postura preconceituosa, de agir como se muçulmanos fossem menos racionais por causa de um bando de fanáticos que não os representava. E essa foi uma história nova que me fez pensar muito.

Com cada viagem, fui ouvindo novas histórias, e antes de ir para a Bósnia, o primeiro país de maioria muçulmana que visitei, meu estereótipo de muçulmanos incluía a idéia de que eles eram muito hospitaleiros, e que eu ia comer muito bem. Felizmente essa era completamente verdade. 

Sarajevo panorama
Sarajevo, uma das minhas cidades preferidas na Europa

As pessoas falam muito do que fazer, especialmente se você é uma mulher viajando sozinha em países árabes, países muçulmanos, no “Oriente Médio”, que, só para começo de conversa, não são a mesma coisa. A maioria dos muçulmanos não é árabe e não vive no Oriente Médio. E essas regras não vão ser válidas para todos esses países, elas raramente vão ser válidas para um deles. Você pode se sentir muito confortável com shorts e camisetas em algumas partes do Marrocos, especialmente as cidades de praia, e sentir a necessidade de se cobrir mais em cidades mais conservadoras, ou perto de lugares religiosos. Pode ver um tabu sobre bebidas alcoólicas em partes da Turquia depois de beber muito na rua em Istambul. Pode ver alguém contando experiências de hospitalidade, e outra pessoa, de assédio. Ou às vezes ambas acontecem na mesma viagem. Aliás, coloquei Chefchaouen, a cidade azul do Marrocos, na capa porque ela tem uma reputação de lugar tranquilinho e hippie, que é outra história sobre o Marrocos.

Cisterna da Basilica istambul
Arquitetura do Império Romano ainda de pé em Istambul

Outra forma de aprender mais histórias sobre esses países tem sido o Projeto Volta ao Mundo em Livros e Filmes. Muitos deles se preocupam com a radicalização e o terrorismo, como o pai de The Arch and the Butterfly, livro do Marrocos, um socialista que não consegue acreditar que o filho virou um fundamentalista. Tem também a Maya de The Good Muslim, livro de Bangladesh, que entende a radicalização do irmão como uma reação aos horrores que ambos experimentaram durante a guerra, mas que se ressente de como isso afetou a relação deles, e de como afeta seu sobrinho pequeno. Muitas das histórias falaram da situação das mulheres, mas de perspectivas muito diferentes. Eu gostei muito de um comentário da Rajaa Alsanea, autora de Girls of Riyadh, meu livro da Arábia Saudita, que fala sobre como elas estão procurando um caminho, que não é necessariamente o do Ocidente, mas uma construção própria. Uma outra das descrições mais interessantes foi do Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, meu livro sobre o Brasil, em que africanos muçulmanos escravizados são uma parte importante do romance, e sentia como uma parte da nossa história da qual eu sabia bem pouco. E também, livros sempre são uma boa forma para aprender sobre culturas diferentes para se preparar para uma viagem, durante uma, ou no lugar de uma, já que não dá para fazer todas a viagens que quero e às vezes é melhor viajar pelos livros e filmes.

Então esse post é só para falar um pouco dessas histórias que estou aprendendo, e como elas afetam minhas viagens. Porque agora quando as pessoas tentam justificar tudo de ruim que acontece em um país de maioria islâmica dizendo que “é porque eles são muçulmanos, eles são diferentes, é a cultura deles, tá no livro sagrado deles”, perguntam se eles usariam o mesmo argumento para falar que as leis homofóbicas na Rússia são resultado de eles serem cristãos. Ou se quem é criado cristão automaticamente tem algo a ver com o atentado contra o Porta dos Fundos, o Anders Breivik, quem entra atirando em clínica que faz aborto, e outros terroristas que, por serem brancos, geralmente não são chamados assim pela mídia.

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