Volta ao Mundo em Livros: Portugal – Caderno de Memórias Coloniais

Chegou a hora de ler um livro para Portugal, e eu logo pensei em falar sobre um dos melhores livros que li nos últimos tempos, o Caderno de Memórias Coloniais da Isabela Figueiredo. Fiquei com um pouco de dúvida no entanto se seria o melhor livro para Portugal, já que o livro fala principalmente da vida dela crescendo em Moçambique, que ainda era uma colônia. No final, para mim fez sentido, e vou tentar mostrar o motivo no review.

Quando Isabela Figueiredo tinha treze anos, ela foi mandada para longe de Moçambique no meio da guerra civil com uma passagem conseguido a custo e suborno e a missão de contar o que estava acontecendo no país. Todos lhe repetiam as histórias que ela devia passar para a frente: as dos portugueses brancos vitimados durante a guerra civil. Outras histórias ela devia calar, as do colonialismo, porque afinal ela cresceu ouvindo que era um “colonialismo benfazejo”, que estava civilizando os africanos. E ela mostra exatamente o que era essa educação na figura do pai, que tinha fugido da miséria em Portugal para ser patrão na África, e preferia contratar negros porque podia pagar menos e bater neles quando não o agradavam. O pai, racista até a morte, transforma-se em uma imagem do colonialismo, apresentado de uma forma tão honesta que mesmo hoje causou muita controvérsia em Portugal.

“Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-carrascos. Entre as vítimas há carrascos”

O pai deu para ela uma educação humanística, ela diz que ele era muito sensível, e por isso ele mesmo deu as ferramentas que permitiram que ela visse como ele era machista e racista. E ela fala sobre como sempre quis perguntar como ele, tão católico, podia tratar outros seres humanos tão mal, o que faz o livro parecer tão atual para mim.

Quando a autora chega em Portugal, ela foi reconhecida como uma “retornada”, como eles chamavam as pessoas que vinham das colônias com as independências. E esse é um dos motivos pelo qual decidi que esse livro ia ser ótimo para representar Portugal, porque a maioria desses “retornados” eram, como ela, gente que tinha nascido na África, mas que era vista como portuguesa porque era branca. Eles sofreram preconceito em Portugal quando voltaram, e ela reconhece nesse grupo um acordo tácito de não falar francamente sobre a vida na África. Eles só podiam falar o que era socialmente aceitável, algo na linha de “tínhamos criados, mas os tratavamos muito bem, dávamos todas as roupas velhas para eles”, algo bem na linha do “a minha funcionária é como se fosse da família” aqui no Brasil. Foi esse acordo social que ela quebrou com o livro.

Fiquei pensando muito no livro Cultura e Imperialismo, em que ele analisa romances vitorianos britânicos do ponto de vista do colonialismo. Em livros como os da Jane Austen, do Dickens, das irmãs Brontë, muitas vezes em que uma pessoa é descrita como rica, eles mencionam que ela tem plantações de açúcar no Caribe. Ou seja, a riqueza das casas de campo inglesas vêm do colonialismo e da escravidão, e isso era algo que era conhecido pelos leitores da época, mas no que a gente não foca tanto hoje. Mas mostra que a história da Europa sem a história do colonialismo está incompleta. Por isso a história da infância da Isabela Figueiredo em Moçambique é para mim fundamental para entender a história de Portugal. Quando ela vai estudar em Portugal, ela vê os “retornados” sendo vilanizados como os ladrões que roubaram dos africanos e agora tinham voltado para roubar os empregos dos portugueses da metrópole, o que mostra o como o desconforto com a história de colonialismo acabou fazendo alguns bodes expiatórios. Agindo como se só eles fossem os colonizadores, a sociedade portuguesa podia agir como se quem ficou no país não tivesse se beneficiado do colonialismo também. E isso foi algo incrível para ser parte da minha leitura de Portugal.

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