Como é ser uma mulher viajando sozinha pela Rússia

As notícias que vem da Rússia sobre questões de gênero tem variado entre desanimadoras e aterrorizantes, e por isso quando eu estava indo para lá recebi muitas perguntas sobre como é ser uma mulher viajando sozinha pela Rússia. Recentemente teve uma blogueira feminista processada por “incitar ódio contra os homens”, descriminalização da violência doméstica, uma jovem de 17 anos foi estuprada e depois culpabilizada por isso e transformada em meme. Quando eu estava na Rússia, um anúncio do Burger King prometia hambúrgueres grátis para a vida toda para mulheres que conseguissem engravidar de jogadores de futebol. Um legislador falou contra, não por ele ser degradante, mas porque elas deveriam ter filhos “russos”, não “de outras raças”. E cansei de ouvir gente falando que era só piada, que feministas não tem senso de humor, que ele na verdade é um defensor das mulheres porque ele tá tentando proteger futuras mães solteiras. E quando eu voltei, teve o caso das irmãs que mataram o pai abusador em auto defesa e podem passar décadas na cadeiaTodas horríveis, mas que eu não sabia se teriam efeito sobre mim, uma turista lá só por alguns meses. Então vou contar um pouco da experiência.

Quando eu cheguei no meu albergue em Moscou, vi que ele é em uma das maiores avenidas da cidade, que só tem como atravessar por uma passagem subterrânea. Logo pensei que quando saísse a noite ia só ficar do “meu” lado da cidade, porque nunca que eu ia atravessar aquela passagem sozinha de noite. O medo passou rápido, porque em Moscou e Petersburgo eu via mulheres caminhando sozinhas a qualquer hora. Eu estava na Rússia durante a primavera, quando praticamente não existe noite e tem mais gente na rua em geral, e em áreas muito centrais, mas me senti muito segura e foi um ponto positivo da viagem.

O primeiro aspecto dessa cultura patriarcal que eu notei no albergue tinha a ver com como os padrões de gênero são rígidos. A maioria das russas que ficavam no albergue, principalmente as jovens, passavam horas se arrumando, maquiando, fazendo cachos no cabelo. Elas saíam parecendo estrelas de cinema, mas ela saíam de noite depois de horas de preparação, e muitas vezes os caras que vinham buscá-las vinham vestidos com roupas de ginástica da Adidas dos pés à cabeça. E isso era visto como normal: as mulheres tem que estar sempre perfeitas se elas querem ser bem tratadas. Vários caras me disseram que eles ficam felizes em agirem como cavalheiros, em pagar a conta, em abrir a porta, mas só para mulheres que sabem agir como damas. Sério.

Também vi tanta masculinidade tóxica que me senti cansada. Homens que me perguntavam sobre o Brasil e depois me cortavam no meio da minha resposta para explicar o que eles tinham perguntado, que falavam sobre como mulheres devem agir e se vestir, que ficam ofendidos se você não aceita uma oferta. Uma vez eu saí com um grupo do couchsurfing e um cara me perguntou se eu queria um milkshake. Eu agradeci, e falei que estava gripada e não ia me fazer bom. Ele comprou mesmo assim e insistiu tanto para que eu bebesse que eu fui embora. Uns dias depois, um amigo me convidou para um passeio e eu disse que era durante o meu turno e que não dava para ir, e ele respondeu para eu tentar porque parecia legal, mas que ele não ia falar mais nada para não ser o estereótipo de russo que não sabe ouvir não e fica insistindo. Comentários assim me faziam pensar que minhas experiências pessoais foram bem representativas.

Durante a União Soviética, a Rússia se tornou um dos primeiros países em que as mulheres conquistaram o direito a voto, o primeiro onde elas conquistaram o aborto legal (depois proibido de novo entre os anos 30 e 50), divórcio, licença maternidade e disponibilidade de creches foram logo instituídos. Hoje em dia, na Rússia, existe uma herança positiva da liberação durante o comunismo: segundo a UNESCO, cerca de 41% das pessoas trabalhando com pesquisa científica são mulheres, mais do que em qualquer outro país. Mas o problema é há uma noção de que o feminismo não é mais necessário. Pelas notícias que saíram recentemente, tá longe de ser verdade.

A imagem sempre passada é que a mulher e o homem eram iguais, embora ela nunca tenha se concretizado. Em toda a história da URSS, só duas mulheres chegaram ao Politburo, que fazia todas as decisões. Isso permanece. E os padrões de gênero não se alteraram, então as mulheres tinham trabalho fora e estudavam, mas ainda tinham que fazer todo o trabalho doméstico. A reação contra o socialismo veio com um retorno a “valores tradicionais”, esse mito universal, e essa idéia vai desde a Igreja Ortodoxa (lembrando que as vocalistas do Pussy Riot foram condenadas em um julgamento onde o promotor disse que feminismo era um pecado mortal incompatível com os valores da Igreja) até esses padrões de gênero exagerados de que homem bebe vodka e luta com urso e mulher tem que se embonecar (no melhor estilo “não sou feminista, sou feminina”).

Tinha hora que eu pensava se eu vi tanta rigidez com os padrões de gênero porque venho de uma bolha de universidade de humanas. Afinal, o Brasil é considerado o segundo pior lugar do mundo para nascer mulher, atrás só da Índia. A moral da história é que vi muito esses padrões, mesmo como turista, mas também vi muita gente, principalmente os que trabalham no albergue ou saem com couchsurfers, que está aberto para o mundo e não vê feminismo como uma modinha européia que vai destruir a família tradicional russa. Vi pouquíssimo assédio de rua. Tinha ouvido falar muito para evitar os policiais russos, que eles eram terríveis, mas só tive experiências de ser tratada com muita educação, mesmo quando era eu que tava fazendo merda sem saber e tava sentada lendo na grama onde não podia. Mas essa parte tem também muito a ver com privilégio branco. Em geral, diria que a Rússia é um país complicado para viver, mas fácil para visitar quando se é uma mulher viajando sozinha.

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