Matera: de vergonha da Itália a patrimônio da humanidade e capital da cultura

Se você for hoje em Matera, vai ouvir várias histórias sobre como é uma das cidades mais antigas do mundo a ser continuamente habitadas. Já tinha gente em Matera há dez milênios, e já era uma aglomeração importante na Idade do Bronze. Quando eu fui lá em novembro de 2018, vi por toda parte orgulho pelo reconhecimento como terceira cidade mais antiga do mundo, depois de Aleppo e Jericho. Então causa espanto ler que o governo italiano já tentou destrui-la, quando a cidade ficou conhecida como vergonha nacional para os italianos.

Matera italia casas construidas na pedra sassi
Casas construídas com a pedra dos Sassi

Matera foi uma cidade relativamente próspera pela maior parte da sua história, relacionando-se bem com cidades da Magna Grécia (as colônias gregas no sul da Itália) e do Império Romano. Ela sempre foi um importante centro regional, sendo inclusive a capital da região da Basilicata por alguns anos, até que Joseph Bonaparte transferiu o título para Potenza. Foi quando ela perdeu esses status que a situação decaiu. A população foi se empobrecendo, e principalmente aqueles que moravam nos Sassi, as cavernas escavadas na rocha de Matera, viram-se em situações insustentáveis.

O médico italiano Carlo Levi foi preso nos anos 40 por atividades anti-fascistas e condenado ao exílio na Basilicata, em cidades próximas a Matera. Em 45, logo depois do fim da guerra, ele escreveu um livro sobre a experiência chamado Cristo ficou em Eboli. Eboli era a última cidade da Basilicata onde a linha do trem chegava, e depois disso, para ele, viviam pessoas “fora da História”, onde a civilização e o cristianismo ainda não tinham chegado. Ele descreve a miséria, a falta de higiene, as epidemias de malária, as crianças correndo atrás dele na rua implorando por quinino, a taxa de mortalidade infantil de quase 50%. Matera, onde famílias enormes viviam em cavernas apertadas, dividindo o espaço com animais, foi chamada de vergonha nacional.

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Museo Casa do Vico Solitario, a casa de uma família de onze que vivia com os animais em uma caverna de Matera

Desde a época do fascismo havia projetos para sanitizar Matera, e foram esses que foram usados nos anos 50, quando o governo pós-guerra resolveu lidar com a situação. Os primeiros planos foram de construir uma nova cidade, planejada por arquitetos famosos como um laboratório urbano. Eles diziam que não construiriam blocos de apartamentos todos iguais, que reproduziriam em apartamentos modernos os vicinati, espaços de convivência que as pessoas tinham nos Sassi, que eles teriam o mesmo senso de comunidade. As primeiras famílias a serem evacuadas saíram voluntariamente do Sasso Caveoso, onde as casas estavam em pior condição, e foram colocadas nesses apartamentos, muitas pedindo por apartamentos que não tivessem vista para a cidade antiga.

O problema é que em algum momento a idéia de mudar as famílias que moravam nas cavernas em piores condições e reformar as casas construídas (⅘ da população) virou a idéia de tirar todo mundo da cidade antiga, por bem ou por mal. Várias famílias foram tiradas à força, ao mesmo tempo em que blocos de apartamentos começavam a virar a norma e que as pessoas descobriam que os espaços de convivência não eram tão orgânicos assim, e que ficavam vazios pela maior parte do tempo.

A cidade antiga virou praticamente uma cidade fantasma. Alguns permaneceram lá, alguns idosos que tinham vivido lá a vida inteira, alguns artistas e ativistas como o advogado Raffaello De Ruggieri, mas eram pouquíssimos. A maior parte do centro agora pertencia ao governo, que deixou que as igrejas em cavernas se degradassem, que o patrimônio se perdesse, que afrescos fossem vandalizados e roubados, sem fazer nada para impedir. Alguns defendiam que a cidade deveria virar um museu, outros falavam em cobri-la inteiramente em cimento, quase literalmente enterrando a vergonha que ela tinha representado. A cidade se tornou set de vários filmes, inclusive o Evangelho Segundo Mateus, do Pasolini, em 64, e a versão cinematográfico de Cristo Parou em Eboli, em 79, ao mesmo tempo em que ficava conhecida pelos italianos como uma terra de ninguém, um lugar de drogas e prostituição.

Matera italia igreja rocha caverna santa maria dell'idris
Igrejas de San Pietro Caveoso (à esquerda, construída) e Santa Maria dell’Idris (em cima, na rocha), que foram vandalizadas durante as décadas deabandono de Matera

No albergue conheci uma mulher que visitou Matera com os pais quando ela era adolescente, no final dos anos 80. Ela fala que quando eles chegaram com o carro com placa de Milão várias crianças se ofereceram como guias, e foi um menino de dez anos que os levou pelos sassi abandonados e cheios de lixo. Ela lembra de forçar portas para ver cavernas e custar para notar os afrescos nas rochas, e só então descobrir que aquela era uma igreja antiga.

Matera italia sassi abandonados
Hoje a maioria dos Sassi que ue vi estavam em reformas, ou já utilizados, mas ainda dá para encontrar alguns abandonados

Em 93, os Sassi de Matera foram reconhecidos como Patrimônio da Humanidade, o primeiro lugar no sul da Itália a receber esse título. Os Sassi começavam a ter uma pequena renascença, com empresas de software abrindo em Matera, e então isso foi impulsionado pelo turismo. Cavernas se tornaram hotéis, albergues, clubes de jazz que faziam propaganda da sua cucina povera. A comida era vista como nada sofisticada, de camponeses, agora faz sucesso justamente por isso, é “farm to table”. A forma como os habitantes viviam, sem lixo, onde tudo deveria ser reaproveitado, era vista como pobre e incivilizada, agora é sustentável. Cada setembro Matera abriga um festival de ficção escrita por mulheres, festivais de jazz o ano inteiro, ônibus de dois andares que ligam os pontos turísticos mais famosos.

Mais recentemente, Matera foi escolhida como uma das capitais culturais da Europa para 2019. O diretor artístico da campanha, Joseph Grima, já declarou em campanhas que quer evitar gestos olímpicos, grandes construções, e focar na sustentabilidade. Eles sabem que grandes eventos já mataram outras cidades, e procuram como se reinventar a luz desse, com o dinheiro e o turismo que ele traz, sem perder o que os torna únicos.

Matera italia grafite não apaguem a historia
O grafite pede “non cancellate la storia”: “não apaguem a história”

Décadas depois do esvaziamento dos sassi, eu fiquei hospedada em um albergue chamado Ostello dei Sassi, na parte nova da cidade, que foi escavada há apenas quinhentos anos. No meu albergue, conversando sobre a história incrível de Matera, muitos de nós pensávamos que vergonha nacional foi deixar perder tanto patrimônio. É claro que a situação de algumas famílias era insustentável e opções deveriam ser oferecidas, mas a idéia de esvaziá-los completamente veio de uma perspectiva higienista.

Ir em Matera me fez pensar muito no Brasil também. Eu me lembrei de conversas com pessoas mais velhas, que falavam do estado terrível dos casarões de Ouro Preto há algumas décadas, ou de como os de Paraty acabaram nas mãos de milionários. Eu me lembrei de várias discussões que já vi sobre favelas, que falam delas como um problema a ser solucionado. Em que falar sobre algumas casas em área de risco de desabamento vira rapidamente um argumento sobre tirar todo mundo e mandar para uns prédios na periferia, destrui-las porque “estragam a vista do Dois Irmãos”, ou até de deixar uma ou duas como um museu, para os gringos que acham bonitinho. O que vai acontecer, e será que daqui a algumas décadas vão ter jovens em albergues discutindo o que a gente fez?

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