Memorial Lipke – a história de como uma família de Riga se arriscou para salvar judeus do Holocausto

Eu abri a porta para o Memorial Lipke e me vi em um corredor mal iluminado, pensando se estava no lugar certo. As paredes são todas de madeira, como as casas tradicionais nas ruazinhas que eu tinha acabado de percorrer. Eu segui o corredor e finalmente achei a entrada do museu, onde uma atendente me recebeu em inglês, falando que a visita era gratuita e me oferecendo um audioguide.

Memorial Lipke Riga entrada

No primeiro ponto o audioguide já contava o básico da história: o casal Žanis e Johanna Lipke e seus três filhos resgataram judeus do gueto de Riga durante a ocupação nazista da Letônia e os esconderam no porão de sua casa, e conseguiram tirar dezenas de pessoas do país. Antes de ouvir a história melhor, visitei o subsolo, construído em cimento como uma réplica da primeira versão do bunker em que a família escondia judeus, cavado pelo próprio Lipke. Lá uma mostra temporária exibia os desenhos da artista Aleksandra Beļcova feitos no gueto de Riga, um testemunho inédito de seus horrores.

Depois fui para o primeiro andar, começando a visita. Eles contam brevemente a história dos Lipke, e como Žanis planejou ser contratado pela força aérea alemã para tirar judeus do gueto. Ele podia tirá-los por um dia como trabalhadores, e depois atrapalhar o processo de contagem para que a ausência deles não fosse notada. Depois do primeiro bunker, que desmoronou, ele construiu um maior, onde ele podia manter entre 8 a 12 pessoas. Eles não sabiam quando a guerra acabaria, então ele colocou eletricidade no abrigo, tanto para que eles pudessem viver um pouco melhor quanto como um aviso: quando a família cortava a luz, significava que estranhos estavam perto do bunker. Os Lipke também traziam jornais, livros e até um rádio, e tentavam manter alta a moral dos que ficavam presos no bunker.

Com a sua rede de colaboradores, os Lipke salvaram pelo menos 50 judeus, cerca de um quinto de todos os judeus que sobreviveram a guerra na Letônia. Eles também salvaram resistentes que foram perseguidos pelos nazistas ou pelos soviéticos, assim como jovens que foram forçados a entrar para o exército nazista e depois perseguidos por isso. Quando os soviéticos invadiram a Letônia, Lipke foi interrogado várias vezes, já que os soldados acreditavam que ele devia ter ouro e diamantes escondidos. Poucas pessoas conseguiam acreditar que ele tinha feito tudo aquilo sem esperar nada em troca. O museu brinca com isso. Ele tinha uma raiva pessoal aos alemães, fez pela aventura, ele era uma pessoa boa?

Durante o percurso do museu, nós passamos por exibições de objetos da família, das pessoas que eles salvaram e de outros colaboradores, tudo com o audioguide que nos conta as histórias de cada um. Também vemos entrevistas em vídeo com vários deles. Música clássica toca no fundo, especialmente composta para o museu e para cada visitante. É que ele tem sensores de movimento, e a música se altera dependendo de quantas pessoas estão lá e de como elas se movem.

Memorial Lipke arca

Os Lipke são Justos entre as Nações, o reconhecimento dado a quem arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra. Mais recentemente, decidiu-se construir o museu que conta a história deles. Ele foi financiado apenas com doações particulares, e planejado pelo arquiteto Zaiga Gaile. O museu é claramente inspirado no armazém de madeira construído por Lipke para disfarçar a entrada do bunker, assim como nas casas tradicionais do bairro. O último andar foi pensado para lembrar uma sukkah, um abrigo temporário que tem importância religiosa no judaísmo. Por fora, o que você só vê na saída, ele foi pensado para parecer uma arca, como a de Noé, ou com um barco virado, abrigos para a vida.

Memorial Lipke familia salvou judeus segunda guerra Riga exterior

As casas de madeira tradicionais desse bairro

Quando eu estava procurando saber mais sobre o museu antes de ir, vi em vários sites ele sendo descrito como “otimista”. O museu conta uma história que nos faz sentir bem, de alguém que lutou pelo que é justo e conseguiu salvar dezenas de vidas. Mas acho que tem outros motivos para ele ser tão frequentemente descrito assim.

Riga Letonia video Johanna Lipke memorial

Durante a Segunda Guerra, a Letônia foi invadida pelos soviéticos, depois pelos nazistas e depois pelos soviéticos de novo, e essa durou quarenta anos. Os três países dos Bálticos acabaram com a fama de colaborar com o nazismo. Eu sei que essa é uma questão complicada, já que tem gente que colaborou para tentarem se salvar ou por pânico dos bolcheviques. Da mesma forma, muitos colaboraram com os comunistas por pânico dos nazistas, e isso gerou teorias de conspiração insanas como a de que a invasão soviética era uma vingança judaica pelo Holocausto (embora a União Soviética também tenha perseguido os judeus). A Lituânia chegou a punir judeus da resistência anti-nazista por terem ajudado os soviéticos.

Um dos resultados é o que os historiadores chamam de Teoria do Duplo Genocídio, que colocam o nazismo e a URSS como o mesmo fenômeno. Podemos discutir sempre como ambos foram formas de totalitarismo, como ambos foram responsáveis por milhões de mortes, como ambos geraram cicatrizes que ainda são sentidas nos países por onde passaram. E a discussão pode ser riquíssima, como no Memória do Mal, Tentação do Bem do Todorov. Mas quando parte-se do pressuposto de que eles são iguais, isso é geralmente utilizado para relativizar o Holocausto e falar que outro povo foi a verdadeira vítima da Segunda Guerra.

Os museus que tratam da história recente dos Bálticos costumam ser alvo de enorme controvérsia por isso. Na Lituânia, quando o Museu dos Genocídios foi aberto, ele não mencionava o Holocausto, no qual morreram 90% dos judeus do país, sem contar os que foram trazidos do Oeste para campos de concentração por lá, e por isso ganhou o apelido de “Museu do negacionismo”. A Estônia não tem um museu do Holocausto, apesar de ter ser famosa por ter sido o primeiro país declarado judenfrei, livre de judeus, pelos nazistas (mas tem um museu judaico, e tem post sobre essa visita).

Não é difícil entender porque relativizar o Holocausto, minimizar os horrores do nazismo e usar essa retórica de verdadeira vítima em uma Europa que jurou que isso nunca mais aconteceria de novo, mas onde os crimes antissemitas só aumentam (olhei rapidinho no Google e achei reportagens sobre o aumento de crimes na França, no Reino Unido e na Alemanha).

Talvez por isso esse museu seja tão otimista, porque ele mostra pessoas que conseguiram enfrentar os horrores do século XX sem cair nessas armadilhas. Sem eu-sou-mais-vítima de você, sem provocar vergonha ao falar de colaboracionismo (que deve ser comentado, mas tem hora para tudo), sem minimizar a dor dos outros porque a sua foi minimizada, com exemplos de pessoas das quais os letões podem se orgulhar. Não é o museu definitivo do século XX no país, lógico, tem muitas outras histórias que precisam ser contadas, e nem todas vão ser inspiradoras assim. Mas em uma época de crescente polarização, é uma história que precisamos ouvir.

Cheque também nossos outros posts sobre a Letônia.

Clique na imagem para ler mais sobre os lugares que eu visitei que nos lembram a história da Segunda Guerra

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