Porque eu odeio o conceito de “autêntico” quando viajo

A princípio, o significado de “autêntico” parece óbvio. Existe o falso, o lugar construído só para inglês ver, o Kitsch, e existe a atração autêntica. E, em alguns casos, é isso mesmo. Mas quanto mais eu viajo, vejo que autêntico geralmente significa “algo que se conforma com a visão que eu já tinha de um lugar, e que eu não quero mudar”. É focar na diferença e ignorar as semelhanças. E a cada vez que ouço, ela me incomoda mais.

 

Porque é dizer como uma cultura deveria ser

Catedral salvador sobre o sangue derramado são petersburgo salvador sobre as batatas

Para mim um exemplo forte disso foi na minha viagem para a Rússia. A verdadeira Rússia tem Igrejas com cúpula de cebola, velhinhas com lenço na cabeça, gente bêbada e ursos. Por isso, a Catedral do Sangue Derramado é a parte mais autêntica de Petersburgo, embora tenha sido construída séculos depois da época em que esse estilo estava na moda por um governante que queria exaltar essa época como uma época de ouro. Ou seja, ela é vista como mais autêntica exatamente pelo mesmo motivo que o bairro gótico de Barcelona é visto como menos autêntico do que o resto da cidade.

Muita gente fala “Petersburgo é europeia demais”, “Moscou é europeia demais” e partem em busca da Rússia de verdade, em uma visão completamente orientalista, de aumentar as diferenças, de usar os conceitos de Rússia e Europa como oposições simplistas. Não sei a que ponto alguém decidiu que o medieval russo, com todas as suas influências bizantinas e italianas, era mais autêntico e mais russo do que o barroco russo, com todas as suas influências holandesas e italianas. Mas é uma visão simplista do que uma cultura é.

Outro exemplo: o estadunidense e o argentino que, em um bar do Rio, encheram meu saco falando porque eu pedi uma caipivodka falando que não era “real”, não era “autêntico” e que era um insulto à “caipirinha de verdade”.

Sabe o que eu estava falando sobre como para mim autêntico é o que se conforma a visão da pessoa sobre o que o país era? É uma fantasia, uma visão formada pela tv, pelo instagram, pelo que a gente escuta. Se você tem uma visão sobre o que um país deveria ser, e ele é diferente disso, é melhor questionar seus estereótipos do que o que está diante dos seus olhos.

 

Porque é achar que culturas são puras, uniformes e paradas no tempo

Culturas são influenciadas. É assim que o Kebab virou uma comida de rua que a gente associa com a Alemanha e o cuscus foi eleito o prato preferido dos parisienses. E essas são as mais óbvias, mas quantos pratos “tradicionais” vem de uma mistura de culturas. A Sicília tem tantos pratos com beringela por causa da presença árabe no sul, e tantos pratos com tomates porque eles souberam usar esse fruto novo quando ele chegou das Américas. Para que ficar se apegando a uma noção de que o melhor é a cultura pura, se isso nunca existiu?

 

Porque é exoticizar e reduzir

Para os gringos, o Brasil verdadeiro envolve favela, pobreza e gente alegre, dançando na rua. Pouco mais. Eles podem ir para o Rio e se decepcionar ao encontrar prédios grandes, McDonalds e cafés, porque parecem demais com o que eles já viram antes, e decidir que a favela é mais autêntica, é o Brasil de verdade. Pode parecer orgulho-ferido-classe-média-sofre, mas para mim eles estão negando uma nacionalidade, para as pessoas da favela, eles estão negando humanidade. Exoticizar pode ser degradante e desumanizador. Os gringos fetichizam a pobreza e o pobre, agem como se a violência fosse a dos filmes de Hollywood (já ouvi de vários que ela “dá caráter ao Rio” e que “não teria graça se a cidade fosse segura”).

Quando falam sobre o terceiro mundo, muitas pessoas (inclusive nós que vivemos em um país do terceiro mundo) tendem a agir como se seria melhor que eles tivessem permanecido livres da influência ocidental, sem internet, restaurantes internacionais ou penicilina para a nossa conveniência de turistas. Que quem vive lá seria mais autêntico em uma religião pagã, porque nada melhor para quem teve um conquistador ditando que religião ele deveria ter do que ter um turista ditando que religião ele deveria ter.

Achar que eles são mais autênticos sem a modernidade é prender a cultura deles ao passado. Deixa o “povo exótico” sair da caixinha de exótico e ter o mesmo contato com o mundo que você espera ter indo para lá.

 

Porque é desprezar o que é feito para turistas

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“Autêntico” também é usado em oposição ao que foi construído para turistas (ou dominado por turistas). É a Torre Eiffel, a Mona Lisa, a troca dos guardas em Londres, o Pão-de-Açúcar, Times Square. E você não tem a obrigação de ir a nenhum deles, eu sou super contra essa idéia de lugares que você tem que ver. Se não te interessa, não vá. Mas se te interessa, não deixe de ir só por causa dos malas que falam que isso é de turistas, e eles são da raça superior dos viajantes.

O problema de contrapor o autêntico ao turismo é que leva à uma pagação de eu-sou-melhor-viajante-que-você que é insuportável. Se você já ficou em um albergue, deve ter conhecido alguém assim, que dá uma risadinha quando você conta que amou o programa turistão e enche a boca para dizer que tava em um mercadinho “com os locais”. A graça de viajar é ir no que te interessa, descobrir seu estilo de visitar lugares diferentes sem encher o saco de ninguém. Quem se importa se é turistão ou não?

 

Tem horas que eu entendo o que as pessoas querem dizer com a palavra. Lógico que depois de ouvir como os italianos odeiam as versões estrangeiros do “espaguete à bolonhesa” que não se compara com o tagliatelle al ragù deles, a gente quer comer o autêntico. É claro que se você está procurando um casaquinho nos Andes e quer algo de qualidade você vai perguntar onde dá para comprar pelo de alpaca autêntico. Como eu falei no início, é o que não é falso. Mas a cada dia penso mais antes de usar a palavra com A.

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