O mito de Petersburgo: a cidade construída sobre ossos

“Um gigante a construiu: faltando pedras, ele pavimentou os pântanos com ossos.”

Mikhail Dmitriev

Não sei quando minha obsessão com Petersburgo começou. Mas posso dizer que foi uma obsessão alimentada a livros. Depois li livros que falavam do mito próprio da cidade, que também foi alimentado com livros. Dois pontos altos foram Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, o estudo da modernidade de Marshall Berman, e Petersburgo, uma História Cultural, de Solomon Volkov. Ambos falam de como um mito de Petersburgo como uma cidade artificial, de uma modernidade deformada, e de como essa ideia surgiu junto com a cidade. E quando eu andava pela cidade, não conseguia parar de pensar em todos esses livros, em vê-los pela cidade.

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Quando o tsar Pedro I resolveu construir sua capital européia, ele escolheu as áreas de pântanos do rio Nevá (que em russo significa literalmente lama). Por ter um sistema de canais, ela logo foi chamada de Veneza do Norte, mas a inspiração maior foi Amsterdam.

A cidade foi planejada por engenheiros e arquitetos trazidos da Holanda, Itália, França e Inglaterra. Petersburgo tornou-se do dia para noite uma das maiores cidades da Europa. Uma década após o início da construção, já tinha 35 mil construções, em duas décadas tinha cem mil habitantes.

Contraditoriamente, o tsar só conseguiu construir sua capital moderna tão rápido porque ele tinha um poder que no ocidente não tinha paralelos. Ele ordenou que todos os pedreiros do Império se mudassem para a nova cidade, e proibiu que se construísse com pedra em qualquer outro lugar. Ele obrigou a nobreza a construir palácios na cidade, sob pena de perder os títulos. Ele obrigou centenas de milhares de servos a trabalharem para a construção da cidade, drenando os pântanos e construindo os canais. O esforço era tamanho que, em três anos, centenas de milhares de trabalhadores morreram por lá. Pedro não se importava, então ninguém se deu ao trabalho de contar os corpos. Eram demais para serem retirados, então a cidade foi construída em cima deles. Os mortos embaixo dos monumentos logo se tornaram parte do mito da cidade.

Os camponeses russos falavam no tsar anticristo construindo uma cidade amaldiçoada. Surgiram lendas de que a tsarina Eudóxia, a primeira esposa de Pedro que ele tinha encerrado em um convento, teria dito “Petersburgo ficará vazia”, e com isso selado o destino da nova capital. E, logo depois da morte de Pedro, parecia que ela estava certa. Por alguns anos a cidade foi praticamente abandonada, e viajantes falam de matilhas de lobos passando pelas ruas.

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Nos próximos séculos, os tsares russos fizeram de Petersburgo a sua capital, e as construções continuaram. Petersburgo foi construída nos estilos que estavam em voga na Europa, e os estilos que a gente acha que são tradicionais russos, como as abóbadas em cebola, foram proibidos.

Moscou foi despojada do título de capital. Isso é muito interessante, porque em muitos pontos essas cidades são vistas como opostos. Para muitos russos, Petersburgo era cosmopolita, Moscou era verdadeiramente russa, Petersburgo era revolucionária, Moscou era religiosa, era a “terceira Roma”, Petersburgo era o iluminismo, Moscou era a tradição.

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Berman vê no poema O Cavaleiro de Bronze, de Puchkin, o início de uma tradição literária que vê Petersburgo como o lugar de “uma modernidade bizarra e desvirtuada”.

Ele se passa durante a enchente de 1824, uma das três que destruíram muito o centro da cidade. O personagem principal é um pequeno funcionário, Evgueni, que mora em um quarto apertado na cidade – como tantos personagens da literatura russa após ele.

No meio da enchente, ele tenta chegar ao lugar onde mora sua amada, mas fica preso, ilhado em uma praça. Ele mesmo, como Puchkin aponta, transforma-se em uma estátua de Petersburgo, em frente ao Cavaleiro de Bronze. No dia seguinte, ele contrata um barco para procurá-la, mas a sua casa foi arrastada pelas águas. Evgueni enlouquece, e um dia, perambulando pela cidade, volta ao mesmo lugar, em frente ao Cavaleiro de Bronze.

Ele ameaça a estátua e o tsar antes de correr, e ouve os passos do cavalo de bronze o perseguindo. Por onde quer que ele vá depois disso, consegue sempre ouvir os cascos de bronze.

Para Berman, o poema sintetiza a história da cidade: uma visão de grandeza e magnificência, a idéia louca de que é possível domar a natureza pela vontade imperial, a vingança da natureza, reduzindo a grandeza a entulho, a vulnerabilidade e o terror das pessoas comuns no meio dessa batalha de gigantes. Também faz sentido com uma visão que já existia entre a nobreza da época, das enchentes como uma vingança divina por aquela cidade artificial.

Depois do poema, a estátua também ficou vinculada aos mitos de Petersburgo. Dizem que se ela for retirada do lugar, Petersburgo cairá (na Segunda Guerra, enquanto a maioria das estátuas foi evacuada ou enterrada, essa foi cercada por um sarcófago de madeira e deixada quietinha, porque né. Vai que).

Depois de Pushkin, a cidade assumiu na literatura a imagem de lugar assustador, espectral, uma cidade-miragem que poderia se dissipar a qualquer momento. Essa é a Petersburgo dos pequenos funcionários de Gógol, e a “cidade mais abstrata e premeditada do mundo” de Dostoiévski. Em Crime e Castigo, um dos investigadores encarregados do caso da velha usurária diz a Raskolnikov que não é surpresa vê-lo doente e nervoso, dado o clima da cidade. Também é algo que aparece muito, como o clima úmido e chuvoso, com invernos rigorosos e verões sem noite, influencia as pessoas que vivem na cidade.

Todos esses temas também voltam na poesia do início do século XX, em Blok, Gumiliov, Akhmatova, Mandelstam, Bieli. A Petersburgo deles é uma Petersburgo relegada, tirada da posição de capital da Rússia, que perdeu até o nome, agora chamada de Petrogrado. Para eles, Petersburgo é a Palmira do Norte, a cidade dos monumentos imponentes, e, depois da revolução, o símbolo das suas promessas não-cumpridas.

Nós nos encontraremos outra vez em Petersburgo
Como se ali tivésemos enterrado o sol,
E então pronunciaremos pela primeira vez
A palavra abençoada sem sentido.
Na noite soviética, no negro de veludo,
No vácuo do veludo negro, os olhos adorados
De mulheres abençoadas ainda cantam,
Vicejam as flores que jamais morrerão.

Ossip Mandelstam

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Vamos sentar na neve pisoteada
Do cemitério, suspirando de leve
Com a ponta da bengala, traçarás palácios
Em que viveremos felizes para sempre.

Anna Akhmátova 1917
Tradução de Lauro Machado Coelho

LENINGRADO

Eis-me de volta à minha cidade. São estas as minhas velhas lágrimas,
Minhas pesquisas veias, as glândulas inchadas da infância.

Então estás de volta. Clara amplidão. Aspira
O óleo de peixe das lamparinas ribeirinhas de Leningrado.

Abre os olhos. Conhece esse dia de dezembro,
Gema de ovo com o breu terrível batido em si?

Petersburgo! Não quero morrer ainda!
tens o número do meu telefone.

Petersburgo! Guardo ainda os endereços;
Posso consultar as vozes desaparecidas.

Vivo clandestinamente e o sino,
Que arranca os nervos e todo o resto, reboa em minhas têmporas.

Espero até amanhã por convidados que amo,
E faço retinir as correntes da porta. Leningrado, dezembro de 1930
Ossip Mandelstam

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