Tsaritsyno – quem controla o presente, controla o passado

Não é sempre que você visita um parque super agradável e pensa que ele tem tudo a ver com o romance distópico que você tá lendo. Mas isso aconteceu comigo quando visitei Tsaritsyno, ao sul de Moscou.

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O parque é propagandeado como o parque de Catarina, a Grande. Ela comprou a propriedade quando passava por lá de carruagem e se apaixonou pelas paisagens. Ela ordenou que o arquiteto Vassili Bejanov construísse lá um palácio, mas quando ele estava quase pronto ela foi inspecioná-lo e disse que os quartos eram apertados e escuros, e que não tinha como viver lá. O palácio então foi destruído, e hoje ainda dá para ver a fundação em frente ao palácio atual.

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Em 1786, o arquiteto Matvei Kazakov propôs o projeto de um novo palácio, que foi aprovado pela tsarina. A construção foi interrompida algumas vezes, por problemas de dinheiro, e ainda não estava terminado quando Catarina morreu. Nenhum de seus sucessores manifestou interesse por terminá-lo, então ele permaneceu assim, uma casca vazia, que “ainda era construção e já era ruína”, como diz Caetano, por mais de duzentos anos.

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Entre 2005 e 2007, o governo russo resolveu finalmente terminar o projeto. E aí chegamos na parte que me lembra do romance distópico que eu estava lendo naquele dia, O Dia do Opritchnik, de Vladimir Sorokin. A opritchina era um órgão criado por Ivan, o Terrível, para eliminar seus inimigos. Eles eram conhecidos como “cachorros do tsar”, e usavam a insígnia de uma cabeça de cachorro decepada (para farejar os inimigos do tsar) e de uma vassoura (para varrê-los para longe). Eles procuravam parecer monges, vestindo-se de preto e fingindo um estilo ascético, mas inventaram várias formas de tortura e foram responsáveis por milhares de assassinatos.

No romance de Sorokin, os tsares retornam ao poder na Rússia, e trazem de volta com eles os opritchnik. Nós acompanhamos um dia na vida de Komiaga, que começa quando ele participa do estupro coletivo da esposa de um nobre caído em desgraça, depois supervisiona uma produção cultural para garantir seu patriotismo, vende proteção para comerciantes chineses, e participa de uma cerimônia com os outros opritchniki que serve como um clímax e zomba da homofobia do regime atual. Em meio a tudo isso, ele usa uma linguagem arcaica, cheia de aforismos e que não permite palavrões, e faz questão de afirmar sua fé ortodoxa. Ou seja, eles ainda tentam parecer monges enquanto aterrorizam as populações civis.

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De novo, o que tem a ver? A Rússia de hoje não retornou ao tsarismo, mas tampouco se tornou uma democracia. Aliás, os protestos em que eu fui logo antes da quarta inauguração do Putin foram convocados sob o apelo “ele não é nosso tsar” (ele estava no segundo mandato quando o livro foi publicado). E a relação do governo com a igreja ortodoxa é a cada dia mais promíscua, como a gente viu com a prisão das cantoras do Pussy Riot por fazer uma oração anti-Putin. Putin não trouxe os opritchniki de volta, mas mandou os cossacos, outro grupo de capangas do tsar, para Moscou pela primeira vez em um século. Em seu governo, os siloviki, os antigos membros de redes de segurança como a KGB, tornaram-se uma elite com grande representação nos governos do presidente. Eles até são conhecidos pelos casamentos internos e sistemas de apadrinhamento, como a aristocracia costumava fazer.

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Putin se mostra como um tsar, como aquele que uniu as terras russas – estamos vendo o resultado mais recentemente na Criméia, que Putin ligou à Rússia com a maior ponte da Europa. Ele se apresenta como um salvador, que restaurou o orgulho nacional depois de uma época de caos, os anos 90. Com isso, ele se coloca como um análogo dos primeiros Romanov, cuja dinastia se consolidou depois do Tempo dos Problemas.

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Então podemos nos perguntar: porque em 2005 o governo resolveu terminar esse palácio que estava lá por 200 anos? Por que investir em mobiliá-lo, construir uma fonte luminosa que toca música clássica, etc? O governo Putin é extremamente nacionalista, mas se perde de vez em quando sobre que passado querem glorificar. Não querem falar mal do socialismo, porque Putin era da KGB, e chegam a glorificar Stalin como o grande vencedor da Segunda Guerra. Os tsares eram vistos como tiranos durante o comunismo, com algumas exceções, por exemplo, Stalin via Ivan, o Terrível como um grande homem, que fez o que era preciso para modernizar a Rússia. Provavelmente, é como ele mesmo queria ser visto.

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Quando a reconstrução de Tsaritsino começou, as autoridades de Moscou o chamaram de um parque dedicado à “Era de Ouro de Catarina II”, da qual eles se proclamaram herdeiros. Catarina tinha seguido os passos de Pedro ao criar cidades, suas casas de campo tiveram um papel fundamental em desenvolver a arquitetura na Rússia. E agora o governo de Moscou se via como o novo elemento na cadeia, transformando Moscou em uma cidade limpa, segura, colorida.

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O historiador Aleksei Kometch escreveu um artigo sobre a reconstrução do palácio de Catarina que ele chamou de “Nós teremos o passado que queremos e o patrimônio histórico, nós o construiremos”. Ele ecoava as críticas de vários historiadores, de que o palácio era uma “reconstrução de fantasia”, que não foi baseada em preocupações legítimas com esse patrimônio. O palácio nunca tinha sido completado, mas agora ele tem um Hall Tauride, em homenagem ao príncipe Potemkin, um amante de Catarina que, diz a lenda, convenceu a imperatriz a construir um palácio aqui. Não há objetos do palácio original – como poderia haver? ele nunca foi mobiliado – mas o palácio foi construído para passar a imagem de uma monarca esclarecida, que trouxe o iluminismo para a Rússia.

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Então se você vai para Tsaritsino pensando em aprender sobre Catarina II, sinto muito. A reconstrução transformou as ruínas românticas em uma reconstrução kitsch. Não dá para aprender muito sobre aquela época – mas dá para pensar muito sobre a Rússia atual, que quer se ver como herdeira daquilo. E talvez pensar em ainda outra distopia, a de 1984, e uma das frases mais repetidas de George Orwell: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

Que eu saiba, O Dia de Opritchnik ainda não foi publicado no Brasil. O único livro de Sorókin que temos por aqui é Dostoiévski-Trip, outra paródia excelente, e que saiu em tradução direta do russo de Arlete Cavaliere, na Editora 34. 

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