Volta ao Mundo em Livros: França – Canção de Ninar

O livro Canção de Ninar, de Leila Slimani, chegou com a recomendação de ter ganhado o Goncourt, o maior prêmio da literatura francesa, e com a fama de ser um livro viciante que você não consegue largar. É raro um livro ser os dois, e isso já me intrigou, já quis ler esse livro como o nosso representante da França.

Depois fiquei intrigada com a primeira frase: “O bebê está morto”, que me lembra Camus e me faz querer ler o livro de uma sentada, e parecia confirmar essa dupla recomendação. O livro já estava com fama de thriller da babá que mata as crianças (não é spoiler). Além disso, ele fala da relação complexa entre uma mãe e uma babá, algo pouco explorado na literatura, e com tudo isso resolvi que o representante da França estava escolhido.

A mãe é Myriam, que, como a autora, tem origem marroquina. Quando ela tem a primeira filha, ela passa todo o tempo com ela, convencida de ser a única que sabe o que a filha precisa. Mas quando o segundo nasce, ela se vê a cada momento mais insatisfeita, e resolve voltar a trabalhar. O marido fica contrariado, ressalta que ela vai ganhar o tanto que eles vão gastar com uma babá, mas se ela está se aborrecendo com as crianças, que seja. Ela se orgulhava de ser a primeira da classe na faculdade, e lembra de como sonhava em se tornar uma advogada, e vai descobrindo com um misto de alívio e horror que talvez outra pessoa seja capaz de cuidar das crianças e de conhecer seus mínimos gestos.

O marido não é o único a mostrar contrariedade, a sogra a reprime abertamente como uma mãe ruim porque ela voltou a trabalhar, os colegas não a chamam para sair com todos porque ela tem filhos, e sabemos, em um dos poucos vislumbres do que acontecerá depois do crime, que o advogado de defesa da babá colocará a culpa toda nela, nessa mãe que achava que ter filhos não bastava para definir sua vida toda, que tinha uma carreira, que tinha ambição. O nome da babá é Louise, segundo a autora, em homenagem a Louise Woodward, a babá inglesa acusada de sacudir um bebê e causar a sua morte, porque um dos advogados que a defendeu disse no julgamento que se a mãe não queria que nada acontecesse com a criança, deveria ter ficado em casa.

Louise no início é a babá perfeita, que os pais encantados chamam de fada. Ela é ao mesmo tempo infinitamente disponível e praticamente invisível. Ela está lá para cuidar das crianças a qualquer momento, para que os pais possam fazer horas extras no trabalho e se divertir, ela limpa, ela deixa o jantar pronto, mas ao passar a noite lá para que eles possam sair, ela nem sonharia em dormir na cama do casal, imagina, o sofá tá ótimo.

Cheia de dívidas que o marido deixou e sem contato com a filha que ela negligenciou para cuidar dos filhos de outros, ela tem que voltar todas as noites para uma realidade de miséria e isolamento. Não surpreende que ela queira passar cada vez mais tempo nessa casa onde ela quer imaginar que é indispensável, além de “praticamente da família”. Mas ela sabe muito bem que esse praticamente depende de ela continuar tão disponível quanto invisível. Por isso ela se desespera ao pensar em quando não será mais necessária, em quando terá que ser praticamente da família em outra família, e chega a fantasiar que eles terão outra criança, contra toda evidência.

Na casa onde ela trabalhava antes, Louise sabia sem que ninguém precisasse dizer uma palavra que não era para a filha dela comer com os patrõezinhos, brincar com os brinquedos deles, nadar na piscina. Nessa, ela sabe que não deve dar opinião sobre como as crianças são criadas, o que vemos em uma das cenas mais marcantes do livro. O que para ela é um jogo inofensivo, maquiar uma menina pequena, para o pai dela é uma conspurcação, uma piada grotesca. Louise não dá sua opinião, não se defende, ouve em silêncio a bronca que ela não entende.

Desde o início sabemos que essa babá perfeita matará as crianças que ela ama, e claro que queremos saber o motivo. Mas não existe um grande porquê, uma cena que explica tudo. Ao invés disso existem várias pequenas cenas de desgaste, de falta de comunicação, de contraste entre os mundos desses personagens. Sobre receber tão pouco e resolver todos os problemas dos patrões sem deixar que os seus entrem na casa deles. Sobre temer a miséria, e, no caso da maioria das babás que ela conhece, a deportação (nos primeiros rascunhos, Louise era do norte da África, e a autora resolveu tornar a personagem branca para reforçar seu isolamento – ela é uma francesa fazendo um trabalho que hoje é feito principalmente por imigrantes). Sobre como o trabalho da casa é tão pouco reconhecido, tanto quanto feito pela mãe, que não recebe, quanto quando é feito pela babá, que recebe pouco.

Por isso, esse livro funciona como um comentário sobre relações de gênero, de classe e de etnias na França de hoje. Amei minha escolha para o país. Para ver outras sugestões, não perca nosso post com os livros e filmes para entrar no clima de uma viagem para a França.

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