Volta ao Mundo em Livros: Sudão – Tempo de Migrar para o Norte

Eu recebi Tempo de Migrar para o Norte, de Tayeb Salih, da TAG e resolvi pesquisar mais, já pensando em lê-lo para representar a Sudão. Li que um painel de escritores árabes o votou o livro árabe mais importante do século XX, li um pouco da sinopse, e já estava decidido que era o livro certo para mim.

O livro começa quando o narrador anônimo retorna ao Sudão depois de sete anos estudando na Inglaterra. Ele tem muito orgulho disso, chegando a acreditar que todos os dez milhões de habitantes do país devem ter ouvido falar de seu sucesso acadêmico, e quer contribuir com o governo. Mas logo na chegada ele encontra Mustafa Said, um homem carismático que chegou na região quando ele estava fora, e que não o trata com a adulação por seu tempo na Inglaterra que ele já se acostumou a receber dos outros. O narrador fica intrigado por esse homem, o que aumenta terrivelmente quando uma noite Mustafa bebe e recita poesia em inglês fluentemente. O narrador não consegue parar de pensar então que ele não é quem diz ser.

Mustafá a princípio não está disposto a falar sobre seu passado, fala apenas que ele era uma mentira, um falso Otelo. Mas finalmente ele começa a contar a história da sua vida, de estudante precoce no Sudão, para professor brilhante na Inglaterra, mas sempre com um lado violento e cheio de ódio. Na Inglaterra, ele se transforma em uma fantasia orientalista, usando o seu exotismo para seduzir mulheres britânicas, usando o sexo como dominação do colonizado contra o colonizador, como vingança, ataque moral. O livro foca em como ele arruina a vida de cinco mulheres. Ele se apresentava como Otelo, assumindo cada estereótipo sobre ser negro e muçulmano, todas as histórias sobre desertos dourados e selvas que os ingleses tinham na cabeça. São as cenas gráficas para os padrões da época dessa parte que renderam muita dor de cabeça para o autor e censura para o livro.

É difícil tirar da narrativa generalizações sobre o encontro de culturas entre colônia e metrópole, negro e muçulmano versus branco e cristão. Mustafá seria, como dizem em seu julgamento, um homem bom corrompido no Ocidente? Nesse ponto, chovem comparações que vêem o livro como um Coração das Trevas invertido. Também me lembrei do livro do historiador Mark Mazower, que se chama Dark Continent porque ele acha que o epíteto usado para a África do século XIX se aplica melhor à Europa do século XX.

O final do romance dá outra dimensão à vida de Mustafá Said. Não quero dar detalhes sobre o que acontece, mas só comentar que em alguns momentos o narrador pensa que se o que ele fez era ruim na Inglaterra, devia ser ruim também naquela aldeia do Nilo. E os eventos do final extrapolam isso da oposição sul versus norte que tinham até então. A opressão sexual é metáfora para a colonização, e ao mostrá-la no Sudão, ela se transforma em aviso, em mau presságio sobre como a independência pode se transformar em outro tipo de colonização.

O narrador parece no início o bom exemplo do colonizado que foi estudar na metrópole e voltou para ajudar seu país, em contraposição ao mau exemplo de Mustafá. Mas, conforme o livro avança, ele se mostra inefetivo, vazio, passivo, incapaz ou não disposto de exercer diferença na vida de ninguém. O seu trabalho se revela completamente desconectado com o que os sudaneses precisam. Mais intimamente, ele não consegue alterar a vida daqueles com os quais têm obrigações.

Quando ele finalmente percebe as tragédias que foram causadas por sua eterna relutância em tomar uma decisão, ele resolve fazer uma, mas nós não sabemos se foi, mais uma vez, tarde demais, ou se era a decisão certa.

Achei um livro fantástico, embora difícil e doloroso, especialmente no final.

6 comentários

  1. Fernando Bretas

    Júlia, parabéns mais uma vez.
    Não só pelo blog, como pelas ideias sempre borbulhantes e assertivas como também pelo texto tranquilo e correto. Clean mas com a profundidade necessária. Vou parar por aqui para não ficar babando demais.
    Vc tem uma coletânea organizada sobre estes livros todos que leu neste seu projeto. Acompanhei três críticas suas e acho que vc tem a mão correta para editar.
    Vc já pensou em editar estes autores? O Brasil tá precisando de novos ares editoriais. Tá tudo mais do mesmo. Sempre fomos pequenos em números,, mas tínhamos qualidade, personalidade. Hoje nossos autores parecem todos Graham Greene, ou seja lá como se escreve isso…
    Mas este livro que vc pontuou hoje é perfeito para fazer um paralelo com o Brasil contemporâneo. Imaginei várias conexões enquanto lia sua resenha.
    Pensei em sugerir a vc então trazer para o Brasil. Aquele russo também… Enfim…
    Continue tá?

    1. Julia Boechat

      Oi, Fernando, tudo bom?
      Muito obrigada, que bom que você está curtindo os textos.
      Para falar a verdade, é um rumo de carreira no qual já pensei e que me agradaria muito. Por enquanto estou focada no mestrado, mas quem sabe no futuro? Enquanto isso vou postando por aqui.
      Li um brasileiro muito bom esses dias, O Pai da Menina Morta, você conhece? Acho que o mercado foi inundado por obras ruins, mas tem uma produção de alta qualidade que resiste.
      Se o livro te interessou, recomendo muito essa edição da TAG, que veio até com um chá com sabores do Sudão.
      Abraços

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