Humor ácido em tempos de guerra – uma viagem pela Bósnia

O guia atravessava Sarajevo mostrando como as árvores nas ruas parecem todas novas. As velhas foram destruídas pela população durante o cerco, quando os ocupantes cortaram o gás e as pessoas ficavam desesperadas para se aquecer durante o inverno. Em pouco tempo, quase ninguém tinha móveis. Tudo que era de madeira foi queimado. Livros, bibliotecas inteiras, qualquer coisa que pudesse trazer um pouco de calor.

Ele conta sobre como as pessoas desesperadas tentavam canalizar o gás natural que saía do solo, mas que era perigoso porque gás não tem cheiro. A chama falhava, e sua casa se enchia de gás sem que você pudesse perceber. Você tentava acender um cigarro ou fazer café, e sua casa explodia. Ele nos contou sobre as pessoas que ele conhecia que ainda tinham o rosto coberto por cicatrizes. Aí ele virou e disse:

“- Sabe qual é a diferença entre Sarajevo e Auschwitz?

– Em Auschwitz tinha gás.”

Isso foi algo que aconteceu comigo várias vezes. As pessoas contavam essas piadas de humor ácido e eu não sabia se ria, chorava, oferecia um abraço…

Esse tipo de piada muitas vezes é uma forma de resiliência. Eu consigo entender isso porque é como a minha família lida com lutos, e eu já sabia que não existe uma forma certa de lidar com trauma. Mas não tornou nem um pouco mais fácil saber o que dizer nesses momentos.

Eu fiquei na dúvida se deveria reproduzi-las aqui, porque elas fazem sentido vindas dele, e vindas de mim podem parecer só estúpidas mesmo. Mas não faz sentido ter essa discussão sem deixar claro do que estamos falando.

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Piada com o cartaz das Olimpíadas de inverno, que tinham acontecido dez anos antes e que um guia chamou de “a única coisa feliz que a gente tem para contar para os turistas”

Claro, não são as únicas piadas que a gente ouve por lá. Eu ouvia piadas sobre como os montenegrinos eram preguiçosos que eram exatamente as mesmas que eu ouvia por aqui sobre baianos. Ouvia dos eslovenos serem esnobes e ingênuos, dos kosovares serem caipiras e violentos, dos sérvios serem nacionalistas. Eles também tem seus estereótipos. Quando você começa a entender mais da cultura local, algumas piadas parecem falar tanto que é complicado. Quando você lê que o governo da Sérvia quer o território do Kosovo porque eles perderam uma grande batalha contra os otomanos lá centenas de anos atrás, de que durante o massacre de Srebrenica eles falavam de vingar uma batalha perdida contra os otomanos no mesmo lugar há quatrocentos anos, aí o que você faz com essa piada?

“Quatro astronautas pousam na lua. Um é americano, um é alemão e dois são sérvios.

O americano pula e coloca uma bandeira americana na lua, falando que os Estados Unidos patrocinaram a missão e por isso a lua deve pertencer a eles.

O alemão coloca uma bandeira alemã, e fala que foi a ciência e a tecnologia alemãs que permitiram a aterrissagem, e por isso a lua deve pertencer a eles.

Um dos sérvios tira uma arma e mata o outro. Então ele diz ‘Sangue sérvio foi derramado aqui, então a lua será sempre sérvia’.”

Mostar panorama
Ponte de Mostar, na Herzegovina, destruída durante a guerra

A piada típica sobre bósnios fala que eles são burros e malandros. Eles sempre usam os mesmos personagens, Mujo (apelido de Muhamed), Fata (apelido de Fatima) e Suljo (apelido de Sulejman), ou seja, três nomes muçulmanos. Muitas das que eu ouvi eram as mesmas piadas que já ouvi como sendo de português, com o Manuel e o Joaquim trocados por Mujo e Suljo. Só que eles não tiveram um destino muito diferente da maioria dos seus compatriotas, e também passaram por privações, pela guerra, pela escassez, pelo exílio.

“Mujo e Suljo estão andando por Sarajevo quando uma rajada de tiros os atinge. Suljo leva as mãos a cabeça e Mujo percebe que ele perdeu uma orelha. Suljo procura o chão desesperado e Mujo grita ‘esquece a orelha, o sniper vai nos matar’. Suljo responde ‘a orelha que se foda, eu tô procurando o cigarro que tava atrás dela’!”

“Mujo e Suljo agora estão morando nos EUA. Mujo leva Suljo para ver tudo que ele conquistou no país novo.

– Tá vendo aquela casa enorme, com quintal? É minha casa.

– Impressionante, bom trabalho.

– Tá vendo aquele carro conversível na entrada? É meu carro.

– Incrível! Parabéns, meu amigo.

– Tá vendo aquela mulher maravilhosa na varanda? É minha esposa.

– E quem é esse cara fazendo massagem nas costas dela?

– Sou eu.”

Sarajevo panorama
A biblioteca nacional de Sarajevo

Esse humor é bem característico de Sarajevo, mas não é único de lá. Estudos já foram feitos sobre as piadas de humor ácido feitas nos campos de concentração nazistas. Piadas que falam dos campos, da subnutrição, das câmaras de gás. Eu também me lembro de ver húngaros chamando um antigo monumento ao libertador soviético, já demolido, de homenagem ao estuprador desconhecido. Parece insensível e insano, mas é uma forma de lidar com o horror cotidiano.

Alguns dos bósnios que eu conheci faziam piadas auto-depreciativas sobre o país:

– Como um bósnio inteligente fala com um burro?

– Por uma chamada internacional.

Outros tinham um humor seco. Logo antes da guerra, pichações começaram a aparecer em vários lugares da Bósnia que diziam “Aqui é a Sérvia”. Em qualquer lugar apareciam essas palavras ameaçadoras, por parte de fanáticos que achavam que o território pertencia a eles. Uma das pichações mais famosas foi no correio central em Sarajevo. No dia seguinte alguém respondeu “Não, idiota, aqui é o correio”.

O senso de humor dos bósnios contagiou até os funcionários locais da ONU. Ao falar dos vôos que levavam ajuda humanitária para Sarajevo, eles os chamavam de Maybe Airlines. Talvez você chegue, talvez não. Talvez o avião nem saia. Talvez ele exploda no ar. Destino de hoje: paraíso.

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Maybe Airlines. Destino: paraíso

Resolvi fazer esse post porque não sabia como lidar com as piadas, com o humor sobre isso, mas ainda achava que valia a pena falar sobre isso. O horror da guerra deve ser lembrado para que não aconteça de novo (se é que a gente aprende com o passado), e o humor sobre ele deve ser lembrado não só porque é parte do horror, mas porque é parte do que é ser humano. Talvez ele nos ajude a fazer uma conexão com quem passou por isso, ou a ter algo além de uma história única sobre eles. Tudo que a gente vê na tv e nos jornais sobre quem está passando por uma guerra é sobre como eles são pobres vítimas, e temos que nos lembrar que eles são isso também. Durante a guerra, as pessoas sofrem com bombardeios, com fome e escassez de tudo, mas eles também fazem aniversários, encontram a família, ouvem música, contam piadas. Fica difícil depois ver um bombardeio na tv e pensar que isso acontece com “os muçulmanos”, “os africanos”, em suma “os outros”. Ver que não somos tão diferentes é uma das partes mais difíceis de viajar. Às vezes porque a gente viaja por pouco tempo e só vê o standardizado, o Starbucks, o McDonalds. Às vezes porque a gente quer muito acreditar que somos diferentes. Mas também é a parte mais recompensadora de entrar em contato com outras culturas.

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