Quando eu comecei a ler Jamais o Fogo Nunca, de Diamela Eltit, eu logo tive uma sensação de estranhamento, sem entender bem o motivo. Eu percebi então que as páginas da edição que eu estava lendo não eram justificadas.
Achei muito legal esse trabalho da Editora Relicário em já começar a dar o tom do romance assim, logo de entrada e de uma forma tão pouco convencional.
Embora pouco conhecida no Brasil – esse é o primeiro livro dela a ser lançado por aqui – ela é muito conhecida no Chile. Seus livros que tratam de questões como a ditadura de Pinochet, feminismo, legalização do aborto (proibido no Chile em todos os casos, inclusive de estupro) e do divórcio (só legalizado no Chile em 2004) desigualdade e vida doméstica.
Em Jamais, o Fogo Nunca, a narradora é sobrevivente da luta contra a ditadura chilena. Em grande parte da novela ela está em seu apartamento com o seu companheiro, escondidos da repressão.
A narradora e seu companheiro carregam em si as cicatrizes e marcas da luta armada, do período de tortura em prisões políticas, ela pensa em sua gravidez e no parto improvisado, com éter. Ao mesmo tempo, ela trabalha dando banho em idosos muito doentes, fazendo o trabalho que suas famílias não podem ou querem fazer. Tudo nos mostra como o corpo é frágil.
“Estamos jogados na cama, entregues à legitimidade de um descanso que merecemos. Estamos, sim, jogados na noite, compartilhando. Sinto o seu corpo dobrado contra as minhas costas dobradas. Perfeitos. A curva é a forma que melhor nos acomoda porque podemos harmonizar e desfazer nossas diferenças. Minha estatura e a sua, o peso, a distribuição dos ossos, as bocas. O travesseiro sustenta equilibradamente as nossas cabeças, separa as respirações. Tusso. Levanto a cabeça do travesseiro e apoio o cotovelo na cama para tossir tranquila. Incomoda você e até certo ponto lhe preocupa a minha tosse. Sempre. Você se mexe para me mostrar que está ali e que eu me excedi. Mas agora você dorme enquanto eu mantenho ritualmente minha vigília e meu afogamento. Terei que lhe dizer, amanhã, sim, amanhã mesmo, que devo racionar seus cigarros, reduzi-los ao mínimo ou definitivamente deixar de comprá-los. Não temos o bastante. Você apertará as mandíbulas e fechará os olhos quando me escutar, e não vai me responder, eu sei. Permanecerá impávido como se as minhas palavras não tivessem a menor aderência e continuasse ali, íntegro, o maço que compro fielmente para você.”
Durante a FLIP, que foi onde tive contato com sua obra, ela falou sobre como as ditaduras ainda definem a América Latina, como o Chile ainda tem a Constituição de Pinochet e problemas com direitos humanos.
Espero que mais livros da autora sejam publicados por aqui no futuro. Estou especialmente interessada em Lumperica, seu romance de estréia.
Outros preferidos:
2666 – Roberto Bolaño
Multipla Escolha – Alejandro Zambra