A Casa do Terror: uma propaganda política

Um dos primeiros lugares que visitei em Budapeste foi a chamada Casa do Terror, um antigo centro de detenção usado tanto pelos nazistas quanto pelos comunistas. Também foi a minha maior decepção no país, um museu que se apóia muito pouco em fatos e demais em teatralidade. Segundo o historiador húngaro Andras Mink, a Casa do Terror é simplesmente uma falsa, barata e repulsiva propaganda política.

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A Casa supostamente conta a história da Hungria na Segunda Guerra, mas quem for lá pode sair sem saber que um terço dos mortos em Auschwitz foram judeus húngaros, já que muito pouco se fala em judeus, homossexuais ou roma. Essa é a primeira polêmica do museu. A história da Segunda Guerra é tão truncada e abreviada que quem ler pode achar que foi uma pequena minoria a responsável por todos os mortos da Segunda Guerra, o que não é verdade. Nem se menciona todos as centenas de milhares que se beneficiaram com o confisco dos bens dos judeus, ou que o governo anterior à ocupação nazista era violentamente anti-semita, aliado de Hitler, e que entrou na guerra tentando conquistar partes de todos os países ao redor, que pertenciam à Hungria antes da primeira guerra. A narrativa é de que os culpados pela guerra são os alemães, e quando eles falam do Partido Nazista Húngaro, a ênfase está em nazistas, não em húngaros.

Em 1945, quando a Hungria foi ocupada pelo Exército Vermelho, a casa passou a ser a sede da Autoridade de Segurança Estatal (ÁVH), onde novamente ocorreram torturas no prédio. Parte importante foi a brutal repressão soviética à Revolução Húngara de 1956, mas mesmo nessa parte nem se menciona o nome de Imre Nágy, seu rosto mais famoso, talvez porque ele não se encaixe na narrativa que o museu tenta construir de revolução anticomunista. Ele sempre foi compromissado com o marxismo, mas discordava de como os soviéticos estavam impondo políticas à Hungria.

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O museu tem uma parede dos vitimizadores, na qual vários comunistas tem, na parte de biografia, ressaltada a sua origem judaica. Desde a época da invasão soviética, havia essa idéia louca de que os bolcheviques eram todos judeus e a invasão era uma conspiração judaica para se vingar pelo holocausto. Eu a estudei muito quando fiz uma matéria sobre a história de teorias da conspiração. Também é um dog whistle – algo que você pode falar e passa despercebido, mas que é recebido por alguns grupos – no caso supremacistas brancos e neonazistas – como uma mensagem de apoio.  

Acha que tô exagerando? Maria Schmidt, a historiadora por trás do museu, já publicou artigos falando que a esquerda aumenta o número de judeus mortos no holocausto e que a maioria dos judeus ‘se vingou’ depois na população húngara. O que é revisionismo, negacionismo e anti-semitismo, tudo em um só pacote. Ela frequentemente espalha teorias de conspiração sobre George Soros, o bilionário judeu, em que fala que ele é o “dono” do Partido Deocrata nos EUA e que suas campanhas de filantropia com refugiados sírios são na verdade campanhas para tomar controle da Hungria, de novo em vingança pelo Holocausto. Ela é conhecida por dar termos novos e mais bonitinhos, como marxismo cultural, que Hitler já usava, para anti-semitismo antigo.

Em um momento, na sala sobre anticomunistas, uma placa diz: “Milhares de pessoas se alistaram a várias organizações de resistência armada. (…) Os nomes de muitos deles permanecem desconhecidos. Mentiras comunistas ainda são contadas sobre outros, mas eles são heróis verdadeiros”. Ignore a baranguice, pense só no significado. Havia anti-comunistas lutando pela democracia. Também havia anti-comunistas lutando pela volta do nazismo, pela ‘Grande Hungria’ irredentista que invadiria todos os países vizinhos, etc. Dizer que todo mundo que era contra o comunismo era heróico é reescrever a história.

Em um momento na visita, tinha um pódio em que uma figura trocava de uniforme, vestindo hora a roupa da Cruz de Ferro, hora a roupa da polícia política comunista, o que simplesmente tenta te bater na cabeça e enfiar a propaganda lá dentro. Eles não estão tentando começar um debate, falar que essas são duas formas de totalitarismo que aconteceram na Hungria e pensar suas semelhanças e diferenças – o que seria interessante. Eles estão tentando falar que as duas são malvadas e estrangeiras e acabar com qualquer discussão. Ao mostrar a Hungria como vítima de dois regimes, ambos trazidos ao país por um exército estrangeiro que a ocupou, eles também diminuem a responsabilidade dos húngaros por esses crimes, como apontaram as cientistas sociais Magdalena Marsovszky e Ilse Huber. E do regime fascista do Horthy, que é queridinho do governo atual.

Alguns historiadores apontaram de como ele é uma mostra de como o atual governo de extrema direita da Hungria tenta reescrever a história do país. No meio de uma campanha eleitoral, o primeiro-ministro Viktor Orban não poupou gastos, conseguindo inclusive um tanque soviético. O seu partido, o Fidesz, conhecido como anti-semita e anti-imigração, fala que o nazismo e o comunismo tinham origens fora da “história húngara autêntica”, o que quer que isso signifique, e ignora que os húngaros tinham o próprio partido nazista e comunista. E a nova constituição fala que a Hungria não foi legalmente competente pelo seu destino por um período de mais de quarenta anos, e coloca de novo as questões irredentistas na mesa. Vindo de um partido que tenta criminalizar os refugiados de guerra, não surpreende.

É uma propaganda política efetiva, mas bem dog-whistle, no sentido de que só entende quem já entende um pouco do que está acontecendo por lá. Se você nunca ouviu falar em teorias loucas de negacionistas ou minimizadores do Holocausto, pode nem perceber. Mas eles estão ficando ainda piores: o governo Orbán está construindo um museu do Holocausto que tem recebido muitas críticas do Yad Vashem.

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Tive outra experiência com a narrativa do comunismo em Budapeste, só que essa foi boa. Uma companhia de Free Walking Tour em Budapeste oferece tours temáticos, todos eles baseados em gorjetas. Um dos tours é sobre o comunismo, e acontece todos os dias às 10 e às 15:30, saindo da Praça Vorosmarty.

Eles falam abertamente sobre os piores lados do comunismo, como os estupros em massa cometidos pelo exército vermelho e a repressão à Revolução de 56, mas também sobre o “comunismo feliz” de anos posteriores. A idéia aqui é debater o que o comunismo foi na Hungria, porque uma narrativa histórica de algo tão recente costuma ser difícil, costuma ser alvo mais de briga por quem tem o direito de contar essa história do que dicussões sinceras. 

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O monumento ao liberador soviético é chamado com muito humor negro de monumento ao estuprador desconhecido.

O comunismo na Hungria dos anos 60 a 89 era chamado de Comunismo Goulash, em homenagem ao prato húngaro mais famoso, e fez com a Hungria fosse conhecida como a caserna mais feliz do campo soviético. Ali não tinha filas para encontrar produtos, a liberdade de expressão era maior, e o padrão de vida era relativamente alto. Inclusive, muitas pessoas sentem que piorou desde que o comunismo acabou. Os aluguéis, por exemplo, não são mais controlados e tornaram difícil para um húngaro comum morar no centro da cidade. Não que eles tentem passar como uma coisa boa – como eu disse, eles também são muito honestos sobre Gulags e crimes de guerra. Mas já mostra que eles estão dispostos a desafiar um pouco a historiografia oficial.

Os guias, que geralmente são húngaros que viveram o comunismo, falam honestamente sobre educação, sistema de saúde, viagens, propaganda, esporte e tudo o que você quiser perguntar sob o comunismo. Achei que eles tentaram ser bem sinceros sobre o que achavam que melhorou e o que piorou desde o fim do comunismo. Na primeira parte, o guia passa por lugares da Revolução e explica seus símbolos, na segunda, eles vão para um ruin pub, onde o guia mostra souvenirs da sua infância, como passaporte, identidade, livros de escola, moedas, medalhas, cartões postais, etc. É um lado mais doméstico, de lembrar que o quer que o comunismo tenha sido, também foi a infância deles e causa nostalgia.

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Uma história que adorei foi da minha guia Agnes, que visitou a Áustria quando era criança. Lá, eles ficaram impressionados com a disponibilidade de tudo, especialmente de bananas, que eles só tinham visto uma vez. Eles compraram quilos e quilos, apenas para ouvir dos guardas da alfândega que elas não podiam entrar no país. Então a família se sentou no meio-fio e, não querendo desperdiçar comida, comeram todas elas. Hoje, naturalmente, eles odeiam bananas.

Eles mesmos avisam que esse tour é mais palestra que tour. No final, os guias ironizaram a visão que o governo tenta passar da Hungria como uma pobre nação boazinha, atacada pelos malvados alemães e russos, o que fez com que metade das pessoas imediatamente perguntasse “tipo a Casa do Terror??”. Eles fizeram bastante questão de falar nos crimes cometidos pelo governo húngaro em todas essas épocas e combater esse nacionalismo covarde.

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24 comentários

  1. Inerita Alcantara

    Oi, Júlia. Só um pequeno detalhe: a entrada a este museu é gratuita?

  2. Clara

    O que piorou desde o fim do comunismo?
    Não sou troll, tô perguntando de curiosidade mesmo.

    1. Julia Boechat

      Oi, Clara, tudo bom? Falando em geral sobre os países que eram comunistas na Europa, há uma percepção de que os níveis dos serviços públicos diminuíram, principalmente na saúde e na educação, aumentou a pobreza e a desigualdade, bairros se tornaram gentrificados e, por consequencia, a cidade se tornou mais segregada, e muitas cidades chegaram a perder muito espaço público para as privatizações (30% da área verde de Sofia, capital da Bulgária, desapareceu em 15 anos). Com desigualdade, eles não estão falando apenas de problemas econômicos: o declínio de serviços públicos como creches fez aumentar a desigualdade entre os gêneros. Engraçado você me perguntar isso hoje, tô fazendo um trabalho justamente comparando urbanização socialista e não-socialista, haha.

      1. Clara

        Eu entendo, ninguém fica satisfeito com a piora de saúde e educação ou aumento da desigualdade. Mas eles não acham que valeu a pena? Agora eles tem liberdade de expressão.

        1. Julia Boechat

          Oi, Clara. Tem muita gente que acha que valeu a pena sim, muitos inclusive tem horror do comunismo. Outros acham que algumas coisas eram melhores, mas que os sistema atual ainda é melhor. Tem todo tipo de opinião mesmo, ainda bem ; )

  3. Julia Boechat

    Não precisa falar como se fosse me diminuir, que eu sou de esquerda mesmo!
    Quanto às informações, se tem alguma que você não considera acurada, pode me dizer e debatemos as nossas fontes.

  4. Mike

    Oi, Julia, tudo bom?
    Tava falando justamente isso, sobre como esse museu não passa de propaganda política para o governo Orban, e ninguém entendeu o motivo, falaram que meu comentário não fazia o menor sentido, etc. Coloquei o seu blog como uma das referências, a única que encontrei em português, porque dá para ver que você fez uma pesquisa.
    Meus professores sempre falam desse museu como exemplo de falsificação histórica e de revisionismo. Não sabia que essa discussão estava tão restrita aos meios acadêmicos, e que aparentemente a maioria dos turistas vai lá achando que tá no Yad Vashem, hahaha. Mais um motivo pelo qual o seu artigo é muito bom! Espero que muita gente leia e aprenda o que esse lugar realmente é.

    1. Julia Boechat

      Oi, Mike, tudo bom?
      Acho que muita gente tem uma visão de que a história é uma lista de fatos que foram estabelecidos e museus são lugares que apresentam essa lista. Por isso, não entendem quando a gente critica esse museu. Pouca gente estuda revisionismo, análise de discurso, usos da história, como um museu é construído e quem tá pagando, etc. Na faculdade, uma das minhas matérias preferidas foi justamente uma que mostrava como a antiguidade clássica foi apropriada e deu vazão a diferentes discursos ao longo da história, por isso estou mais atenta a isso.
      Para mim, é bem claro que a Casa do Terror é uma falsificação feita pelo atual governo da Hungria pelos seus próprios objetivos políticos – e que esse é apenas um dos fatores que tornam o Orban uma das pessoas mais perigosas do mundo. Tentei juntar evidências aqui justamente para demonstrar isso.
      Falando no Yad Vashem, você viu que recentemente historiadores do mundo inteiro mandaram uma carta para lá, pedindo que eles tomem posição em relação às distorções da Casa do Terror?
      https://hungarianspectrum.wordpress.com/2014/06/11/still-about-march-19-1944-a-call-against-the-falsification-of-hungarian-history/

      1. Mike

        Oi, Julia.
        Obrigado por me responder tão rápido! Nossa, incrível essa carta! Mas fico triste de saber que um museu pode ser amplamente reconhecido como uma distorsão e ainda ser popular. Muito impressionante isso. Espero que Yad Vashem tome mesmo uma posição e isso ajude a conscientizar as pessoas.
        Gostei muito do que eles falaram sobre como os comunistas e os judeus são quase sinônimos dentro desse museu. Você também fala disso no blog, achei muito interessante. Mais um motivo pelo qual esse lugar não merece o menor respeito, propagandeia estereótipos étnicos.
        Abraços,
        Mike

        1. Julia Boechat

          Oi, Mike.
          Sem problemas, eu tava mexendo no site mesmo quando você comentou, então vi na hora.
          Também fico triste, mas infelizmente muitas discussões da história não atingem um público amplo. Essa até chegou aos jornais, mas, infelizmente, não aos brasileiros.
          Concordo sobre como eles colocam judeus e comunistas como basicamente as mesmas pessoas, mas o problema é que essa é uma propaganda que a maioria dos turistas não vê. A maioria não presta tanta atenção assim às biografias, e quem presta, se não cresceu ouvindo essa propaganda, dificilmente faz a associação e entende o que eles estão nada-sutilmente sugerindo. Para nós, é óbvio.
          Seria bom uma educação melhor, que ensinasse as pessoas a questionar mais (ou melhor ainda, a questionar tudo). Quem ta patrocinando esse museu? Quem ta patrocinando essa pesquisa científica? Essas coisas não surgem do nada, e é necessário sempre refletir sobre isso.
          Abraços

  5. Carlos

    As pessoas deviam procurar saber sobre o fascista Viktor Orbán antes de ir beber em Budapeste. Principalmente sobre esse lugar nojento chamado Casa do Terror.

    1. Julia Boechat

      Oi, Alice, tudo bom?
      Não sou contra, mas acho que deve ser problematizado. Na faculdade, to estudando um livro do Tzvetan Todorov chamado Memória do Mal, Tentação do Bem em que ele faz essa comparação de forma inteligente. No livro, ele estuda outros autores que também fizeram isso, como o Vassili Grossman e a Margarete Buber-Neumann (que ficou presa em campos de concentração em ambos). O que não dá é partir do pressuposto de que os dois são iguais e ficar nisso mesmo.
      Abraços

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